Quando se fala em alta culinária - e, especialmente, em alta culinária francesa -, décadas de associação cultural às elites europeias evocam no público leigo imagens de pratinhos delicadamente construídos, com porções míseras de comida, reduções de reduções de reduções de “comidas de verdade” saboreadas com afetação. O Sabor da Vida talvez seja o melhor antídoto para essa associação infeliz, uma dose cinematográfica concentrada de culinária farta, luxuriosa, medida para matar a fome e satisfazer o impulso muito humano por prazer sensorial, e não para massagear o ego de algum gourmand com aspirações artísticas.
O diretor Anh Hung Tran, imigrante vietnamita que desde meados dos anos 90 se posicionou no cinema francês como um contador de histórias sensíveis sobre relações familiares e amorosas, sempre inseridas em ambientes vívidos de inclinação poética, volta sua câmera mais do que nunca para as sensações e texturas do mundo habitado por seus personagens. Isso significa que longos trechos das 2h15 de O Sabor da Vida são dedicados às idas e vindas majoritariamente silenciosas de Eugénie (Juliette Binoche) e Dodin (Benoît Magimel) pela cozinha da casa que compartilham, fritando e fervendo, assando e flambando toda variedade de carnes, bolos, sorvetes e ensopados.
Nesses momentos, Tran e seu diretor de fotografia Jonathan Ricquebourg atingem um equilíbrio delicado entre o caos controlado das movimentações dos personagens, atirando instruções uns aos outros pelo ar, e a realidade sensorial sólida dos produtos de seu trabalho. A comida em O Sabor da Vida é filmada em tons quentes, terrenos, com câmeras que viajam rápido de um lado para o outro, mas nunca se descuidam da fluidez desses movimentos. Enquanto isso, o processo é realçado por um design de som brilhante: os grunhidos e suspiros dos cozinheiros, os baques e chiados das panelas fazem tanto para nos convencer da arte latente daquela atividade quanto as imagens.
É essa mesma abordagem celebratória, mas desmistificadora, que o filme usa para construir sua história de amor. Parceiros culinários há 20 e poucos anos, Eugénie e Dodin digladiam com a ideia de oficializar também o relacionamento amoroso que têm conduzido de maneira casual por todo esse tempo - quando cai a noite, às vezes, ele bate à porta do quarto dela, e ela decide se o atende ou não. O Sabor da Vida desenha a intimidade entre os dois na cozinha, na coordenação impecável da execução dos pratos, na troca intelectual intensa da definição dos menus… eis aqui duas pessoas que encontram a paixão um pelo outro dentro da paixão que despertam, um no outro, pela coisa que sabem fazer de melhor. É companheirismo que desperta desejo, uma relação onde uma coisa não existe sem a outra.
É nessa e em muitas outras interdependências que o roteiro (também de Ahn Hung Tran) encontra sua poesia. Os personagens se nutrem da comida, mas também deixam que ela fale por eles - culinária como serviço e como expressão. Eles se inserem na natureza quando saem porta da cozinha afora, para supervisionar sua horta, mas também deixam que a natureza invada o seu trabalho nas múltiplas formas que a utilizamos na mesa. Casamento e parceria profissional, fartura e decadência, finitude e persistência, luto e transformação. Binoche e Magimel, reencenando com ternura e inteligência, mas também uma dose providencial de embaraço, uma relação que viveram na vida real - os dois namoraram entre 1998 e 2003.
Em O Sabor da Vida, uma coisa sempre segue a outra, e só existe em decorrência da outra. Um ciclo natural que começa na terra e termina na mesa, sem economia nem presunção, exatamente como precisa ser.
Ano: 2023
País: França/Bélgica
Duração: 135 min
Direção: Ahn Hung Tran
Roteiro: Ahn Hung Tran
Elenco: Benoît Magimel, Juliette Binoche