Os momentos mais marcantes de O Sequestro do Papa são aqueles em que o filme pulsa com a energia inconfundível do ultraje, com a raiva elevada a melodrama que acompanha o sentimento de revolta mais visceral do qual o ser humano é capaz. São nesses rompantes que o diretor Marco Bellocchio - veterano do drama social italiano, com um currículo que atravessa mais de meio século entre filmes celebrados como De Punhos Cerrados e Bom Dia, Noite - quebra a pretensão de realismo que assombra grande parte de sua encenação, levantando o volume da trilha grave de Fabio Capogrosso, por vezes recorrendo a delírios e pesadelos para acenar ao operático, mas sempre derrubando fachadas de civilidade para mostrar o que é sentido por baixo delas.
É um contraste que surge por vezes de forma repentina, e que incomoda pela flutuação de tons. Mas talvez seja essa mesmo a ideia, simular a intrusão e a colisão do sagrado com o cotidiano, os choques dolorosos causados pelo exercício de um poder que se vê como divino aplicado à terra dos mortais. O Sequestro do Papa, afinal, é uma denuncia da Igreja Católica como instituição aglutinadora de poder, dono de um texto que enxerga com bastante clareza o desastre que advém da extrapolação do complexo de salvador do cristianismo em um ambiente de influência social relevante. O trunfo de Bellocchio (também roteirista, com Susanna Nicchiarelli) é tirar dessa trama a tragédia do íntimo invadindo o público, e vice-versa.
A base de O Sequestro do Papa é histórica: o pequeno Edgardo Mortara (Enea Sala na infância, Leonardo Maltese quando adulto) foi de fato tirado da casa de sua família judia no interior da Itália em meados do século XIX, após a Igreja ouvir dizer que o menino havia sido batizado nos ritos católicos por uma criada dos Mortara. O caso, e sua repercussão negativa na imprensa mundial, foram estopim para uma revolta popular e política que retirou grande parte dos poderes institucionais da Igreja e eventualmente unificou as províncias da Itália, sob os protestos do tirânico papa Pio IX (Paolo Pierobon), que demonstra um interesse pessoal no menino.
A partir dessa história real, Bellocchio extrapola dramas familiares e psicológicos, imaginando o abatimento da mãe de Edgardo (Barbara Ronchi, em performance quietamente imponente) e o desespero do pai (Fausto Russo Alesi, que se perde e se acha em uma dor indizível), mas também a doutrinação por medo e isolamento que epitomiza o catolicismo em seus impulsos mais politicamente ambiciosos. O Sequestro do Papa vê a simbologia de sofrimento e violência na qual a Igreja se entrincheirou como símbolos de poder, ferramentas para a domesticação consciente e subconsciente de mentes que eles mesmos tratam de fragilizar - um ciclo vicioso para os dominados, e virtuoso para os dominantes.
Até por isso, Jesus crucificado ganha um misticismo ameaçador sob a câmera do diretor de fotografia Francesco di Giacomo (Baby), traduzindo a ubiquidade deste símbolo de sacrifício como tática de intimidação, guerra psicológica disfarçada de santidade. Na fúria evidente que motiva essas e outras escolhas, O Sequestro do Papa emerge como uma denúncia profundamente sentida, pessoal, e por isso muito potente. É curioso, inclusive, que seja no formalismo que o filme encontre este fogo, quando tão frequentemente ouvimos diretores com impulsos estéticos mais fortes serem acusados de fazer “filmes frios”. A obra mais recente de Bellocchio resgata, de certa forma, o melodrama e a ópera como espaços primários de expressão emocional e social.
Essa história aconteceu, parece nos dizer O Sequestro do Papa, e é bem possível que ainda aconteça ou vá acontecer de novo um dia - talvez, se eu colocar uma música de fundo bem alta, você sinta a raiva necessária para fazer algo sobre isso.
O Sequestro do Papa
Rapito
Ano: 2023
País: Itália/França/Alemanha
Duração: 134 min
Direção: Marco Bellocchio
Roteiro: Susanna Nicchiarelli, Marco Bellocchio
Elenco: Fausto Russo Alesi , Barbara Ronchi , Paolo Pierobon
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