Passagens exercita a narrativa do amor louco em irresistível chave de sátira

Créditos da imagem: Mubi/Divulgação

Filmes

Crítica

Passagens exercita a narrativa do amor louco em irresistível chave de sátira

Ira Sachs se reencontra na narrativa lacunar em um filme conciso

Omelete
4 min de leitura
16.08.2023, às 18H25.

Nem todo cineasta vai reconhecer, mas receber o aval dos franceses é uma conquista importante para a categoria. O cineasta americano Ira Sachs já tinha uma carreira consolidada quando seu sétimo longa-metragem, Frankie, foi selecionado para o Festival de Cannes em 2019. Era menos uma forma de reconhecer o valor de Sachs do que de enquadrá-lo: puxado pela estrela francesa Isabelle Huppert, Frankie tentava fazer um tipo de conto burguês que no imaginário francês se associa a cineastas como Arnaud Desplechin. Frankie não é o melhor filme de Sachs, e o americano não se tornou o novo Desplechin.

Quatro anos depois, Ira Sachs retorna agora com Passagens, um filme melhor acomodado dentro de suas expectativas. Assim como Frankie, trata-se de uma produção francesa com um protagonista que vive no mundo rarefeito do cinema; desta vez acompanhamos o diretor Tomas (Franz Rogowski), que acabou de filmar seu novo longa-metragem e, no processo de descompressão, apaixona-se por uma jovem professora, Agathe (Adèle Exarchopoulos). O longevo relacionamento de Tomas com Martin (Ben Whishaw) então é colocado à prova nesse triângulo bissexual.

Passagens é terreno mais seguro para Sachs porque ele volta a tratar mais de perto de personagens na intimidade, acompanhando com urgência suas flutuações emocionais, ao passo que Frankie ambicionava mais um registro geracional algo desafetado. Foi com esses dramas mais urgentes e intimistas, vez ou outra analisando como casais gays lidam com o desgaste do tempo e da rotina, que Sachs havia se consolidado em filmes como Deixe a Luz Acesa (2012), seu trabalho mais incensado. Passagens representa uma volta aos temas do diretor, ao mesmo tempo em que enveredar pelo amour fou não deixa de ser uma coisa absolutamente francesa.

O amor louco não foi inventado pelos franceses mas é difícil contestar que, no cinema, desde a Nouvelle Vague, foram os cineastas do país que deram a esse subgênero do romance seu estado da arte. Tomas, Agathe e Martin (e ocasionalmente outros parceiros) se engajam em idas e vindas enervantes, cáusticas, surpreendentes e emocionantes do sexo e do amor com uma rapidez e uma oscilação que tendem a testar o tempo de resposta do espectador. Isso acentua uma hilaridade que parece natural a Passagens, e o filme se mostra muito confortável numa chave de sátira, sem de fato assumi-la por inteiro.

Talvez a sátira aconteça com eficiência porque ela não está toda contida no texto. Há pequenas dosagens dela, por exemplo, na forma como as escolhas muito pontuais de figurino traduzem estados de espírito e excitações de Tomas; há outras dosagens na forma como Martin se move em torno de Tomas e os ângulos de câmera e a iluminação denotam posições diferentes nesse jogo doméstico de poder. Em outras palavras, é uma sátira insidiosa, pois inscrita na própria gramática visual do filme. Isso dá a ela uma convicção e um propósito que livram Passagens da armadilha de soar uma crônica moral com ares de superioridade.

Sob essa perspectiva, a primeira metade do filme estabelece as coisas de um jeito irresistível e preciso. Os roteiros escritos por Sachs e seu habitual parceiro Maurício Zacharias já são conhecidos pelas elipses (o brasileiro Zacharias particularmente tem bons 20 anos de prática em roteiros lacunares, desde os tempos em que coescreveu os primeiros e melhores longas de Karim Aïnouz) e Passagens nos chega como uma depuração desse estilo. Cada cena tem sua força isoladamente, então quando a narrativa dá seus saltos temporais essa força não se dissipa em eventos aleatórios ou soltos demais. O efeito é que esperamos a cena seguinte com expectativa, independente de onde e como os personagens estejam, ou de quanto tempo se passou.

A popularidade do amour fou entre cineastas de vanguarda talvez se explique porque o amor louco prescinde de maiores explicações ou relações mais intrincadas de causalidade. São puro sentimento aflorado, enfim, são pura reação, e através dessas histórias de amor destemperado é possível exercitar uma contação de história libertada de convenções de roteiro. Ao mesmo tempo, todos nós somos capazes de entender a lógica de um amor louco, portanto essa narrativa, por mais solta que nos chegue, sempre conservará sua linearidade, sua familiaridade. O amour fou é o tipo de filme onde todo diretor aspirante ao experimentalismo ou ao cinema de fluxo poderá se refugiar enquanto segue fazendo cinema narrativo tradicional.

Essa tradicionalidade é o que Passagens nos reserva do meio para o fim. À medida em que os desencontros do trio protagonista desaquecem e precisam chegar às suas conclusões, fica a impressão de que o filme as alcança com muita facilidade. Não ajuda muito, nesse sentido, que Ira Sachs escolha recorrer a um clichê do cinema de autor na hora de arrematar a questão: personagens que correm, caminham ou pedalam sem parar ou sem destino porque afinal é de moto-contínuo que eles são feitos. Passagens termina depois de econômica e concisa hora e meia, talvez deixando na mão quem esperaria uma lição mais contundente ou transcendental. O que fica é um exercício formal feito com propriedade, independente do idioma.

 
Nota do Crítico
Ótimo
Passagens
Passages
Passagens
Passages

Ano: 2023

País: França

Classificação: 18 anos

Duração: 92 min

Direção: Ira Sachs

Roteiro: Ira Sachs, Maurício Zacharias

Elenco: Adèle Exarchopoulos, Ben Whishaw, Franz Rogowski

Onde assistir:
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