Filmes

Crítica

Quase Memória | Crítica

Ruy Guerra e Tony Ramos em uma belíssima parceria

12.10.2015, às 16H36.

Esperado há quase 20 anos, por marcar um encontro entre o maior cineasta em atividade do país com a literatura de Carlos Heitor Cony, mediado pela chave da alegoria, Quase Memória, de Ruy Guerra, passou feito um trator ontem pela Première Brasil do Festival do Rio 2015 apostando em uma caracterização e uma encenação que estão mais próximas do palco teatral do que da gramática cinematográfica. Desmonta-se o realismo para instalar-se a farsa, em nome de uma trama ambientada em um universo paralelo: o universo da saudade, cuja matéria é a recordação. Nele, as leis da Física obedecem outras regras – a regra do devaneio – o que justifica torções e distorções no Tempo, este todo-poderoso monarca da vida, resultando em um filme filosófico, com visual de cartum capaz de deflagra risadas sazonais.

Frente ao histórico de Ruy, diretor responsável por longas míticos como Os Fuzis (1964) e Estorvo(2000), esperava-se um filme divisor de águas, mas a transcendência aguardada não se realizou: Boi Neon, de Gabriel Mascaro, segue até agora sendo a obra-prima da Première. Mas a comparação é apenas situacional e Quase Memória tem - além de beleza de sobra - força para devorar o troféu Redentor em várias categorias na premiação, com destaque para atuação de Antonio Pedro, no trabalho mais criativo de sua longeva carreira, como coadjuvante. Enche os olhos também a atuação de Mariana Ximenes, como a jovem sonhadora que empenhou seus sonhos em prol de um casamento. Há vigor também no roteiro, que embaralha planos narrativos sem jamais tropeçar em seu próprio arranjo. Competições à parte, é um filme de cinema com “C”, em seu mergulho na experimentação e sua aposta no risco, com fôlego para emocionar.

Se nele existe algum cais de observação da pesquisa narrativa empreendida por Ruy, que sirva como ponto de partida para a compreensão, este seria o encontro entre duas versões de uma mesma pessoa: o jornalista Carlos Campos, vivido de um lado por Tony Ramos (num trabalho mesmerizante) e do outro por Charles Fricks (numa mímese equilibrada do trabalho do colega). Não se sabe ao certo o porquê de eles se encontrarem na casa do velho Carlos: estima-se ser fruto de uma dobra temporal e estima-se ser um delírio da velhice. Sabem apenas que o motivo do encontro é uma conversa sobre ausência: a falta que o pai, Ernesto, encarnado como maestria por João Miguel, deixou em ambos. A partir daí, eles se embrenham por uma jornada pelo passado, seja o pretérito perfeito do real, seja o pretérito imperfeito da invenção, uma vez que ambos os Carlos, jornalistas, são, no fundo contadores de histórias.

Sentados em suas poltronas, um paralelo ao outro, reféns da condição de espectador passivo de sua própria história e da História brasileira, Carlos velho e Carlos jovem vão contabilizando os resquícios do pai, Ernesto, em seus feitos mirabolantes, tendo como bússola a fixação deste por balões. Como tudo é farsesco, toda a direção de arte e todos os figurinos, têm um excesso de cores e de detalhes, com exceção do balão que une pai e filho numa cena lúdica – de extrair lágrimas -, usando o objeto voador como metáfora para a liberdade da rememoração. Excessos de tom também marcam as atuações, mas de modo consciente, como comprova o trabalho cativante de João Miguel. Elefaz do personagem um Forrest Gump, capaz de interferir em episódios importantes da evolução histórica brasileira com suas maluquices.

A reboque de suas peripécias, Carlos vai resgatando os amigos igualmente exóticos do pai. Sua trupe inclui o crítico de teatro Mário Flores (Julio Adrião), o dândi negro Ministro (Flávio Bauraqui) e o velho de farda Capitão Giordano, defendido por Antônio Pedro como um ser capaz de estimular a audácia alheia. Esse exército de Brancaleone injeta humor no filme até que este se encaminhe para uma instância dramática de poesia, quando filho e pai acertam as contas. Ali, Ruy dá a Tony Ramos chance de solar toda a experiência acumulada ao longo de uma vida dedicada a atuação, deixando para o público uma aula de beleza plástica e fé nos poderes autorregenativos do cinema.

Nota do Crítico
Ótimo
Quase Memória
Quase Memória
Quase Memória
Quase Memória

Ano: 2015

País: Brasil

Classificação: 12 anos

Duração: 95 min

Direção: Ruy Guerra

Roteiro: Carlos Heitor Cony

Elenco: Inês Peixoto, Cândido Damm, Antônio Pedro, Flavio Bauraqui, Charles Fricks, Mariana Ximenes, Tony Ramos, João Miguel

Onde assistir:
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