Já ouviu alguém dizer que, no fim das contas, o que o espectador médio entende como cinema (e, portanto, a forma como ele julga bom e mau cinema), é só… edição? Independente de absolutos, há de se reconhecer a função morfológica que a edição tem no meio, o poder que reside no ato de costurar cenas para causar impressões específicas (um take mais demorado aqui, um enquadramento afastado ali, um close-up acolá) e decidir, essencialmente, para o que e como estamos olhando em cada frame de um filme. Daí a importância de Thelma Schoonmaker na carreira de Martin Scorsese, ou de Jennifer Lame nos filmes de Noah Baumbach.
Em Regra 34, essa sinergia entre cineasta e montador não é um fator a se considerar: quem dirige é Júlia Murat, que costuma montar seus próprios filmes - desta vez, ao lado de Beatriz Pomar e Mair Tavarez. Não se trata de uma exceção (de Robert Rodriguez aos irmãos Coen, muitos diretores são também seus editores), mas ainda é curioso observá-la, especialmente porque, aqui, a edição se mostra a pedra crucial de um filme que prospera em justaposições. A mão ágil e audaciosa de Murat por trás dos cortes entre imagens contrastantes da vida da protagonista Simone (Sol Miranda) constrói a grandeza do filme muito mais do que os fatos que se sucedem no plot, cuidadosamente arranjados, mas nunca transbordando para a artificialidade do dramalhão social ou do thriller erótico.
Regra 34 começa com Simone se exibindo em um dos shows adultos que faz pela Internet, se masturbando diante da câmera enquanto usuários do chat lhe dão dinheiro. No final da apresentação, descobrimos que ela acabou de se formar como defensora pública, passou na prova da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e vai começar a trabalhar em uma delegacia que atende casos de mulheres abusadas pelos maridos. A partir daí, o filme se desenrola em um ritmo sinuoso por momentos de trabalho, estudo, lazer e obsessão sexual, desenhando-se como um retrato de personagem que não só é multifacetado, mas que, fundamentalmente, reconhece quando e como uma “face” da sua protagonista transborda para a outra.
Nas aulas, Simone e seus colegas discutem legalização ou criminalização da prostituição do ponto de vista da solidariedade com a prostituta - e Regra 34 imediatamente corta para o meio de um dos shows online da protagonista, especificamente aquele em que ela é empurrada para além de seus próprios limites. No trabalho, ela lida com uma mulher que não quer denunciar o marido, especialmente porque ele “nunca levantou um dedo contra ela”, apesar dos abusos psicológicos - e o filme sai disso direto para um momento íntimo em que Lucia (Simone Comparato), amiga e amante de Simone, sugere um caminho alternativo desconfortável para lidar com o caso.
Aos poucos, a contaminação entre o público e o particular se torna irremediável, e a montagem de Regra 34 é visceralmente eficiente em construir esse processo. Murat, que já editou documentários para si mesma e outros cineastas, se mostra não por acaso uma seletora de imagens perspicaz, ora rimando, ora contrastando as cores e posições corporais para manter ou quebrar a continuidade dessa história na cabeça do espectador. Até os takes de ruas e trilhos urbanos captados pela cineasta e pelo diretor de fotografia Leo Bittencourt estão aqui para nos seduzir, nos integrar ao mundo moralmente complicado da história - que, o filme parece nos dizer o tempo todo, é o mesmo do nosso.
No centro desse processo de fundição das mulheres diferentes que vivem dentro de Simone está ainda a atriz Sol Miranda. Estreante em longas-metragens, ela encontra a linha perfeita entre naturalidade e explosão, posicionando o corpo como instrumento essencial da atuação - especialmente em um papel que tanto o expõe -, como meio através do qual evidencia emoções não só internalizadas no momento, mas também profundamente enraizadas em uma vivência social que nem mesmo é mostrada no filme. O grande intérprete, afinal, é aquele que nos faz ver e entender o que é apenas presumido, ou nem mesmo isso, sobre o personagem e a vida que ele levou.
Seria um erro dizer que Regra 34 discursa sobre qualquer coisa, por mais que tantos temas o perpassem - a começar pelo comentário sobre a pornografia e o ambiente de anonimato online, de onde vem a tal regra que dá nome ao filme. Ele tem ideias ousadas sobre os limites do ideal ético dentro do cotidiano íntimo, sobre a influência quase irresistível dos sistemas sobre o indivíduo, mas essas e outras ideias não são articuladas em um plano abstrato e artificial de discurso - elas são concretizadas em imagens, em procedimento e em narrativa.
Este é, enfim, mais um exemplar do cinema brasileiro que se prova brilhante pelo trabalho duro e diligente que aplica ao meio, às linguagens que o compõem, mesmo diante de um país que cotidianamente se recusa a reconhecer a grandeza da própria arte.
Ano: 2022
País: Brasil/França
Duração: 100 min
Direção: Julia Murat
Roteiro: Julia Murat, Roberto Winter, Rafael Lessa, Gabriela Capello
Elenco: Lorena Comparato, MC Carol, Sol Miranda, Babú Santana