Guy Ritchie despontou no cinema dirigindo duas comédias policiais - Snatch e Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes - de cuja sombra ele até hoje não conseguiu sair. Eram filmes muito particulares que transformavam a cultura dos cockneys (termo frequentemente usado de forma pejorativa para se referir à classe operária e às comunidades periféricas do East End de Londres) em um estilo narrativo, sempre fazendo com que o sotaque carregado desses personagens se traduzisse em uma narrativa verborrágica de idas e vindas, em que o frenesi visual imitava o jeito rápido e mastigado de falar dos cockneys.
Parte do sucesso do Sherlock Holmes de Ritchie se deve à forma como ele reinterpreta o velho detetive como um tipo que se mistura harmoniosamente à fala e ao ritmo das ruas, numa ponte insuspeita entre a Inglaterra vitoriana e a Londres pós-Margaret Thatcher. Agora em Rei Arthur - A Lenda da Espada, Ritchie tenta fazer um movimento semelhante, mas mais ousado, ligando seu estilo às histórias mais profundas do imaginário britânico, as lendas arthurianas. Há cenas neste Rei Arthur que parecem saídas diretamente de Snatch (como o interrogatório no caso dos nórdicos) e grupos de personagens construídos com base em tipos contemporâneos, como a guarda real, que se porta como um corpo policial impiedoso patrulhando a "periferia", e toda a entourage cockney que acompanha "Art" (Charlie Hunnam), um órfão criado em bordel que descobre ser herdeiro do trono.
Esse diálogo entre o mítico e o moderno é curioso, de início, porque hoje entendemos, depois de tantas versões nas telas, que poucas coisas são tão imutáveis quanto recontar histórias de cavalaria inglesas. Sabemos de cor o que esperar da Távola Redonda, das dinâmicas envolvendo intrigas palacianas e magia. O Rei Arthur de Ritchie começa prometendo novidade mas já sofre, porém, com o desgaste da sua fórmula. O que era especificidade se transformou numa commodity do cineasta, repetida filme sim, filme não, e quando deixa de usá-la Ritchie perde sua voz, como ocorreu nos seus piores trabalhos, Destino Insólito e o recente O Agente da UNCLE.
À parte uma boa escalação de elenco coadjuvante (parte dela derivada comicamente de Game of Thrones) que dá consistência ao mundo de sotaques e modos pensado por Ritchie, seu Arthur marrento oferece pouco além da esperada predestinação, em termos de complexidade. Charlie Hunnam faz o que pode para dar gravidade ao personagem, mas o filme não consegue tirar o melhor nem do porte físico do ator, em cenas de ação (quando ele entra no modo "berserk" da Excalibur) que parecem cutscenes borradas de jogos de ação épicos como God of War ou Dark Souls. O fato de Ritchie colocar seu amigo David Beckham numa ponta em uma cena que exigia um envolvimento emocional (e a presença do jogador obviamente tira o espectador do filme) ilustra como o diretor começou a tratar sua identidade de autor como uma piada interna.
Embora se assista com atenção, então, esse Rei Arthur acaba deixando no fim uma impressão de insuficiência. As questões de contexto e os entornos são trabalhados de forma mais interessante do que o protagonista em si, ou a ação em que ele se envolve. Nenhum épico de ação com ambições de blockbuster pode se dar ao luxo desse tipo de inconsistência.
Ano: 2017
País: EUA
Duração: 2h6 min
Direção: Guy Ritchie
Roteiro: Joby Harold, Guy Ritchie, Lionel Wigram
Elenco: Idris Elba, Astrid Bergès-Frisbey, Charlie Hunnam, Eric Bana, Jude Law