Numa época de obscurantismo em que a expressão "intelectual" é vista como sinônimo de pedante, é um grande alívio e chega a ser francamente emocionante ver um filme como Retrato de uma Jovem em Chamas. O longa de Céline Sciamma usa uma situação acima de tudo misteriosa, que é o acaso de apaixonar-se por alguém, com tudo o que tem de indizível e indecifrável, e tenta decodificar esse mistério num filme de intensa troca intelectual, sobre arte, olhar e representação.
Na trama, na França do século 18, Marianne (Noémie Merlant) é contratada para pintar o retrato da jovem Héloïse (Adèle Haenel); a mãe de Héloïse pretende enviar a obra para um pretendente da filha e convencê-lo a casar-se com ela. Como a noiva reluta, Marianne precisa se disfarçar, e se passa por dama de companhia de dia, enquanto pinta de memória, escondida no seu quarto de hóspede, o retrato de Héloïse às noites.
Premiada em Cannes pelo roteiro do filme, Céline Sciamma chega a Retrato - seu quarto longa-metragem como diretora - carregando consigo a imagem de ser uma cineasta da juventude, depois de três filmes sobre desabrochar e amadurecimento juvenil que a própria Sciamma trata como uma trilogia fechada. Nesse contexto, Retrato de uma Jovem em Chamas não deixa de ser também uma história de descobertas da juventude (Héloïse acaba de deixar um convento; para todos os efeitos torna-se noiva antes de entender minimamente o que a vida pode lhe oferecer), mas aqui as descobertas se dão muito mais nas trocas a dois do que numa interiorização de experiências.
Entre os momentos de paixão, as trocas entre Marianne e Héloïse envolvem sentir no rosto a brisa da costa, conversar sobre o futuro, colaborar no ato de cozinhar, dividir incertezas e impressões, assistir a rituais do dia a dia. Sciamma parte do elemental: o contato com a água (Héloïse teme o mar, que a atrai), com o ar (a corrida até o penhasco), com a terra (cortar legumes para o cozido), com o fogo (a cena comunal da fogueira como consagração do Sagrado Feminino). Se o exercício da arte é uma forma de estabelecer uma ligação intelectualizada com o mundo, a pequena vila costeira de Retrato de uma Jovem em Chamas não deixa de oferecer um cenário fecundo para a artista disposta a ver.
Há um plano muito bonito que dá conta dessa fertilidade de modo metafórico, quando Marianne, depois de desembarcar na praia com suas telas todas encharcadas de mar, se aquece nua diante da lareira enquanto deixa as telas secando ao lado do fogo. A sugestão erótica de associar a nudez e o fogo com a pintura é a única senha que o filme precisa para envolver essas personagens num pacto de cumplicidade entre iguais, pacto esse mediado pela beleza, e todo o que acontece a seguir é uma envolvente aproximação entre olhares.
Que grande sacada fazer com que Marianne pinte à noite - momento dos sonhos, das sombras, das projeções - numa evocação do erotismo das Mil e uma Noites, e se a presença de Héloïse lhe desperta uma reação emocional talvez seja, em boa parte, porque Marianne se vê forçada a ativar seu olhar e sua memória diante do seu objeto de trabalho. A intelectualização do afeto (uma ideia que o filme trata com a maior das naturalidades, porque afinal uma coisa está indissociável da outra) acontece em Retrato de uma Jovem em Chamas sem elitismo. Quem se apaixona o faz com a cabeça, e tentar separar o olhar do próprio gesto consciente de olhar é ignorar um dos lados mais fascinantes dessa busca - uma busca que, ademais, empodera demais as personagens conscientizadas de Sciamma.
Ano: 2019
País: França
Classificação: 14 anos
Duração: 119 min
Direção: Céline Sciamma
Elenco: Noémie Merlant, Adele Haenel, Luàna Bajrami