Em Retratos Fantasmas, como em quase todo grande filme, até o que não parece significar nada guarda uma chave importante para o espectador. Por exemplo: em uma sequência por volta da metade do filme, Kleber Mendonça Filho conta que certa noite a atriz Maeve Jinkings estava jantando em seu apartamento - sentada na mesma cadeira onde foi filmada para O Som ao Redor, importante notar - quando um barulho suspeito foi ouvido na rua. Naturalmente, os convidados do jantar todos saem para descobrir o que está acontecendo - mas como é que estamos acompanhando isso na tela? Kleber teve a presença de espírito de ligar a câmera na hora da crise? Bom… não.
“Nós reencenamos tudo depois, é claro”, esclarece o diretor na narração em off que pontua todo o filme, por vezes como repórter, por vezes como contador de história, e por vezes (vide aqui) como comentarista bem-humorado do absurdo da própria forma cinematográfica. Assim, tentando recriar um momento precisamente irreproduzível do cotidiano, Mendonça chega um pouquinho mais perto de destilar a mensagem central de Retratos Fantasmas, um filme que anseia pelo resgate da história e que faz elegia ao poder eternizador da película, mas que eventualmente precisa fazer as pazes com a imperfeição desse registro - a câmera até passa perto de ser uma máquina do tempo, mas não chega exatamente lá.
Há algo de colcha de retalhos em Retratos Fantasmas, como costuma acontecer com documentários que fogem do formato convencional de entrevistas misturadas com imagens de arquivo. Tanto no segmento inicial, que traça a história do apartamento de sua família, quanto na segunda metade do filme, que expande o escopo da narrativa para o centro de Recife e seus cinemas de rua, Mendonça lança mão de fotografias e cenas de filmes (de sua autoria ou não), de plantas arquitetônicas e anúncios de jornal, de segmentos encenados (não exatamente reconstruções dramáticas, mas um parente próximo delas) e tomadas observacionais suspirantes do espaço urbano.
Pode parecer que esses recursos estejam enfileirados sem ordem ou método aparente, mas o fluxo narrativo criado por eles desenha ideias muito específicas. Primeiro, através do resgate dos aspectos de seu lar que ficaram registrados em filme, Mendonça esbarra na fragilidade dos legados que são passados adiante por nossos pais, das impressões deixadas por nossos vizinhos, de todo o tecido que se estende ao nosso redor com o passar dos anos, e como ele se desmancha de maneira desconcertantemente fácil. Depois, reedita esse choque entre o concreto do prédio e o inconsistente do humano em sua homenagem a cinemas de rua que antes eram igrejas, e que hoje são igrejas de novo.
Sejamos justos: é fácil cair no lugar comum em um filme como Retratos Fantasmas, e não é como se Mendonça saísse ileso dessa armadilha. Às vezes, ele parece tirar paralelos e filosofias direto de algum Grande Livro dos Chavões Cinéfilos que deve existir em algum lugar por aí, transversando o espaço urbano com o olhar julgador e preciosista do artista entrincheirado na própria arte. Mas é flagrante o quanto sua visão é mais flexível, mais autoconsciente, mais bem-humorada (como a deliciosa sequência final do longa deixa bem claro), do que a de colegas de profissão que tecem poética sobre experiências e rituais perdidos do cinema.
Retratos Fantasmas, já indica o título, reconhece o seu lugar como réquiem para um mundo que já se foi, e desse reconhecimento desenterra uma melancolia fraturada, e até por isso cheia de pontas cortantes e dolorosas. É um filme que traça paralelo entre a memória humana e a historiografia cinematográfica, com todos os seus filmes perdidos, ou mesmo nunca vistos, acumulando pó em gavetas ou pegando fogo em cinematecas por aí. Sua nostalgia é muito mais densa e mais comovente, enfim, por saber que o retorno aos tempos áureos que deseja é impossível - até porque todo mundo sabe que fantasmas só existem nos filmes.
Ano: 2023
País: Brasil
Duração: 93 min
Direção: Kleber Mendonça Filho
Roteiro: Kleber Mendonça Filho