Serra das Almas começa com o que parecem ser dois filmes diferentes, entrecortados em uma mesma cena. Em um deles, a jovem interpretada por Mari Oliveira (Medusa, Vidro Fumê) dá um mergulho em um rio no meio do mato, enquanto o diretor Lírio Ferreira (Baile Perfumado) deixa nossos ouvidos se encherem dos sons quietamente ameaçadores do campo. Em outro, dois criminosos (Ravel Andrade e David Santos) fogem da polícia em uma van que voa pelas estradas de Pernambuco, com três reféns (Julia Stockler, Pally Siqueira e Vertin Moura) no banco de trás e um pandemônio de gritos e súplicas se misturando ao rock n’ roll que sai do rádio do veículo.
Durante as quase duas horas que se seguem, Serra das Almas explora o tecido conectivo entre esses dois mundos, e o que acontece quando eles se chocam em um único cenário: a casa de campo onde mora a personagem de Oliveira, com o namorado (Jorge Neto), é também onde os tais criminosos vão se esconder e resolver as pontas soltas de um trabalho que deu errado. Ferreira, para o seu crédito, não tem medo de retratar esse choque como… um choque. Confiando muito na mixagem de som reveladora e na montagem brusca de André Sampaio (O Barulho da Noite), o cineasta abusa de momentos em que o contraste entre o urbano e do rural é jogado na cara do espectador através de luzes e sons, sem muita cerimônia ou medo de alienar.
Esse procedimento estético funciona também por estar em harmonia com a narrativa desenhada pelo trio Maria Clara Escobar (Desterro), Paulo Fontenelle (O Porteiro) e Audemir Leuzinger (Nada é Por Acaso). Primeiro, porque Serra das Almas escolhe embaralhar a cronologia da sua história para realçar o mistério em torno das procedências e objetivos de cada um dos personagens - um jogo divertido de quebra-cabeças que também cria mais oportunidades para Ferreira entrecortar passado e presente, em cenários radicalmente diferentes. Segundo, porque a história que os roteiristas querem contar é justamente sobre como o caos da modernidade se infiltra no antigo e no bucólico, através das rachaduras naturais do ser humano, e o apodrece de dentro para fora a tal ponto que não resta nada a não ser abandoná-lo.
Ferreira faz dessa história, de certa forma trágica, um thriller esperto e progressivamente ultraviolento. Embora não seja tão dedicado à ação quanto o produto hollywoodiano médio do gênero, Serra das Almas mantém a tensão em alta através das interações mais banais entre o seu limitado elenco. Há certa imprevisibilidade na relação amistosa que o quarteto masculino principal vai estabelecendo, por exemplo, uma trégua frágil de camaradagem em meio aos embaraços criminosos em que todos estão envolvidos. David Santos encarna com intensidade a personalidade mais volátil das quatro, mas a ambição que brilha por trás dos olhos de Ravel Andrade, e a violência reprimida no meio sorriso de Vertin Moura, contribuem também para estabelecer o quão condicional é essa paz entre eles.
Enquanto isso, as mulheres da história se unem em uma aceitação igualmente vacilante da violência que as cerca. Serra das Almas parece mais interessado, inclusive, em traçar as trajetórias que as levaram até ali, delineando traumas e fugas - mas também anseios e conflitos mesquinhos - que definem suas relações com essa contraposição entre o urbano e o rural. A assertividade de Julia Stockler e a placidez de Mari Oliveira são espelhos interessantes para entender o que leva essas mulheres a escapar na direção de um ou de outro, e quando fazer essa opção não é mais possível. É uma aposta narrativa que gera dividendos, principalmente tendo em vista a reviravolta final da trama.
Essa tensão que vai cozinhando nas interações entre os personagens, e no desenrolar progressivo de seu passado, explode em um clímax que esbarra no grotesco, flerta com o folclórico, mas mantém uma sobriedade dramática rigorosa. Ainda que talvez se estique um pouco além do que permite sua brincadeira de gênero mais vulgar (por mais divertido que seja, um bom jogo precisa acabar antes de se tornar repetitivo), Serra das Almas parece saber que se apoia em um arco narrativo sólido o bastante para suportar - ainda que não com tanta sobra - suas ideias mais ousadas.
Serra das Almas
Ano: 2024
País: Brasil
Duração: 120 min
Direção: Lírio Ferreira
Roteiro: Audemir Leuzinger, Paulo Fontenelle, Maria Clara Escobar
Elenco: Ravel Andrade , Jorge Neto , Mari Oliveira , Vertin Moura , Júlia Stockler
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