A cena pela qual Sra. Harris Vai a Paris deve ser mais afetuosamente lembrado pelos seus espectadores é provavelmente aquela que mostra a nossa protagonista, Ada Harris (Lesley Manville), assistindo ao desfile da nova coleção de vestidos da grife francesa Dior em uma sala privativa à qual apenas os clientes mais abastados têm acesso. O diretor Anthony Fabian, o editor Barney Pilling e o diretor de fotografia Felix Wiedemann unem forças, aqui, para tentar despertar no espectador o mesmo encantamento que Ada sente ao trocar a sua rotina como faxineira em Londres pelos corredores da alta moda parisiense.
A iluminação radiante dos takes que mostram os vestidos, criados ou recriados à perfeição pela sempre brilhante figurinista Jenny Beavan, o movimento gracioso que Fabian impõe às suas atrizes-modelos através das cadeiras distribuídas pela sala, a precisão rítmica com a qual Pilling faz os cortes entre o desfile e o rosto deslumbrado de Manville, a forma como a própria atriz escolhe expressar essas reações (sem subestimar a personagem ou fazê-la ingênua, entendendo que o seu prazer estético é informado e legítimo) - tudo contribui para que a magia dessa transferência de emoções funcione.
Acima de tudo, este é talvez o único momento em que Sra. Harris Vai a Paris transparece escolhas estéticas e narrativas firmes, em que não parece estar apenas flutuando por sua trama inconsequentemente, sem grandes arroubos artísticos. Não que isso seja um problema, exatamente: Fabian, que também assina o roteiro ao lado de Carroll Cartwright, Keith Thompson e Olivia Hetreed, claramente mira no cinema-conforto, adaptando os conflitos e resoluções do livro de Paul Gallico para escapar de emoções difíceis, que não possam ser articuladas dentro das normas dos bons costumes ingleses por cima de uma boa xícara de chá.
É curioso porque, pelo menos em teoria, Sra. Harris Vai a Paris é uma saga de heroísmo trabalhador. Como tal, o filme se revolta contra uma classe alta (e média-alta, inclusive) que vê a presença da protagonista em seus espaços como intrusiva ou indigna - a não ser quando pautada pela servitude do trabalho doméstico, é claro, e mesmo assim tal trabalho muitas vezes é invisível, menosprezado e pobremente recompensado. Fabian e cia. são inteligentes ao reconhecer que até um rico bem-intencionado, no fim das contas, vê o pobre como no máximo uma peça ancilar na narrativa protagonizada por ele.
A jornada de Ada Harris por esse campo minado socioeconômico é uma de afirmação do próprio valor, mas Sra. Harris Vai a Paris foge de articular a raiva e frustração dela diante até das atitudes mais condenáveis dos outros personagens. Nas mãos de uma atriz menos assertiva, ela talvez fosse uma protagonista frustrante - já como interpretada por Manville, há certo charme idealista no afastamento silencioso com o qual Ada responde àqueles que considera casos perdidos, tanto quanto na transformação empática que tenta causar nas instituições com as quais interage.
Isso porque, no fim das contas, a indicada ao Oscar por Trama Fantasma não faz da sua Sra. Harris só mais uma velhinha inglesa dócil, ou uma caricatura condescendente do “pobre valoroso” que ensina uma lição para os ricos. Ela é uma viúva da Segunda Guerra em busca de um sentido na vida, uma mulher à procura de desejo e romance, uma “resolvedora de problemas” que, como toda “resolvedora de problemas” que eu já conheci, não faz a menor ideia de como resolver os seus. Nenhuma dessas coisas recebe mais do que uma menção passageira no texto do filme, mas Manville faz todas elas serem essenciais para entendê-lo.
Sem quebrar o encanto de sua narrativa essencialmente gentil, ela impede que Sra. Harris Vai a Paris ceda às suas tendências mais preguiçosas, e mantém o espectador engajado neste conto de fadas fashionista pela simples virtude de torná-lo muito mais reconhecivelmente humano.
Ano: 2022
País: Reino Unido/Canadá/França/Hungria/Bélgica
Duração: 115 min
Direção: Anthony Fabian
Roteiro: Anthony Fabian
Elenco: Lucas Bravo, Lesley Manville, Alba Baptista, Isabelle Huppert, Lambert Wilson