Na cena que precede imediatamente os créditos iniciais de Teen Wolf: O Filme, o Dr. Deaton (Seth Gilliam) conversa com um bombeiro sobre o seu pupilo, Scott McCall (Tyler Posey), que desde o fim da série original tem trabalhado como adestrador de cães, especialmente quando os bichos estão envolvidos em situações de emergência. “Nós o chamamos de Alpha”, diz Deaton. “Como um cachorro”, observa o (astuto) bombeiro. “Não, como um lobo”, responde o doutor, dando a deixa para a entrada da trilha bombástica de Dino Meneghin e dos gráficos coloridos que imitam silhuetas de lobisomem. Ah, que saudades de Teen Wolf!
A sensibilidade desavergonhada da série fez falta desde que ela deixou a telinha, em 2017, após seis temporadas que se mostraram progressivamente (em narrativa e estética) fora da caixinha. Em seus melhores momentos, o roteiro de Jeff Davis é isso mesmo que a abertura de Teen Wolf: O Filme deixa escancarado: frases de efeito dignas de longas de ação dos anos 1980, encadeadas umas nas outras para formar algo que ao menos lembre vagamente uma trama, deixando espaço para conceitos de fantasia e cenas de delírio/sonho que permitam ao diretor Russell Mulcahy fazer sua mágica.
O australiano Mulcahy assinou 40 (de um total de 100) episódios de Teen Wolf, e seu retorno para o longa-metragem é mais providencial do que o retorno de qualquer integrante do elenco original. Nas mãos dele, Teen Wolf: O Filme é feito com os mesmos ângulos enviesados de câmera, o mesmo amor incondicional pelas máquinas de gelo seco, a mesma obsessão pela fotografia de alto contraste, a mesma despreocupação com o “épico” e o “realista”, a mesma entrega irrestrita à encenação capenga e quadradona que tornou a série tão charmosa - “ruim” só porque nos apegamos demais a um academicismo míope que quer limitar e definir o que é “bom” em cinema e TV.
Vale apontar que Mulcahy tem quase 50 anos de experiência na arte de dar o dedo do meio para esse academicismo. Desde meados da década de 1970, ele tem produzido trabalhos que definem suas épocas mais do que qualquer coisa que foi indicada ao Oscar nos mesmos anos. Primeiro foi nos videoclipes, onde Mulcahy basicamente inventou os anos 1980, dirigindo de “Bette Davis Eyes” a “True”, de “Rio” a “Total Eclipse of the Heart”... enfim, se Stranger Things tem uma estética para a qual fazer referência, a culpa é toda dele. Depois, em trabalhos fundadores do cinema de gênero: O Corte da Navalha para os filmes de criatura, Highlander para os épicos de ação high concept, O Sombra para as adaptações de quadrinhos alternativos.
O seu trabalho de mais de uma década em Teen Wolf adiciona a esse legado e, de certa forma, o vinga. A popularidade da série, a sua emergência nos últimos anos como um marcador de geração, e seu retorno no formato de longa-metragem - tudo isso valida a ideia de que a visão muito particular de Mulcahy está conectada profundamente ao pulso da cultura pop, e que contar uma história assim, com base em uma artificialidade largamente rejeitada pelo estabelecimento do prestígio hollywoodiano, funciona. Inclusive, funciona tanto que até nos ajuda a relevar alguns vícios bobos do roteiro de Davis.
Teen Wolf: O Filme não se preocupa muito com essa história de “justificar” sua existência. O que ele faz mesmo é encontrar uma desculpa para trazer de volta os personagens originais, resgatando vilões há muito esquecidos para que Scott precise voltar a Beacon Hills e reunir seus amigos sobrenaturalmente poderosos, incluindo o ex-Alpha Derek (Tyler Hoechlin, consistentemente a melhor coisa do filme), a banshee Lydia (Holland Roden), a coiote Malia (Shelley Hennig), e uma variedade de outros rostos conhecidos. Ah, e o plano do tal vilão inclui também, convenientemente, a ressurreição de Allison (Crystal Reed), ex-namorada de Scott, que retorna desmemoriada e determinada a caçar lobisomens.
Funciona como exercício de nostalgia para os fãs da série, é claro, e como espaço hábil para alguns atores se entregarem aos seus instintos mais cafonas - estamos olhando para você (e dizendo “ótimo trabalho”!), Ian Bohen. Lá no final do terceiro ato, Davis ainda encontra alguma ressonância emocional genuína na relação entre Derek e o filho, Eli (Vince Mattis), que versa, talvez até meio sem querer, sobre o aspecto monstruoso da proteção paternal, o quanto o tememos na infância e como este medo pode nos afastar, para o bem ou para o mal, dos elementos que herdamos da nossa família.
Teen Wolf: O Filme não sabe exatamente como entrelaçar esse esbarrão com a complexidade temática e as bobeiras de sua (desnecessariamente complicada) trama principal. Davis é um roteirista incapaz de quebrar seus próprios ciclos viciosos, e ainda menos disposto a abandonar estruturas convencionais que não fazem mais sentido para a franquia. Os personagens não-brancos da história continuam parecendo alarmantemente descartáveis, e é flagrante observar como este filme, excessivo em suas 2h20 de duração, pode ser quebrado facilmente em três episódios com clímaxes próprios.
Se o reboot tivesse vindo como uma minissérie de TV linear, talvez isso fizesse sentido. No formato de longa-metragem e no streaming, onde não existe a tradicional divisão em blocos que deixa espaço para os comerciais, um script preso a essas inconveniências só atrapalha a diversão. Mas Teen Wolf nunca foi perfeita, e sua graça nunca foi ser. Ao invés disso, o filme representa a sobrevivência de uma narrativa pop em extinção, que esconde em seus voos formalistas a vontade de nos divertir no sentido mais básico da palavra. É arte em sua forma mais vulgar, beleza em sua função mais pragmática, e entretenimento na sua definição mais tradicional.
Se alguns desajustes narrativos são o preço a pagar para continuar tendo cinema e TV deste tipo, eu só tenho uma coisa a dizer: podem mandar Teen Wolf 2 logo!
Ano: 2023
País: EUA
Duração: 139 min
Direção: Russell Mulcahy
Roteiro: Jeff Davis
Elenco: Shelley Hennig, Holland Roden, Tyler Hoechlin, Colton Haynes, Crystal Reed, Tyler Posey