Cena de Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal (Reprodução)

Créditos da imagem: Cena de Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal (Reprodução)

Filmes

Crítica

Todas as Estradas de Terra propõe um cinema-colagem dramaticamente poderoso

Narrativa fora de ordem e fotografia nada convencional marcam filme “menor” da A24

Omelete
3 min de leitura
22.11.2024, às 16H51.

Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal é a história de Mack, uma mulher negra nascida no interior profundo do Mississippi (EUA). Da infância marcada pela conexão com a mãe, Evelyn (Sheila Atim), à adolescência definida pelo romance com Wood (Reginald Helms Jr.), passando por uma gravidez inesperada e chegando ao retorno para casa na velhice, o longa abraça décadas da trajetória da personagem principal - mas faz isso de forma tão oblíqua, selecionando momentos tão inesperados dessa vida, que o peso dessa ambição nunca realmente é sentido na tela. Menos épico americano e mais estrofe de poesia traduzida em 1h30 de imagens alongadas ou eclipsadas, Todas as Estradas de Terra é uma proposição curiosa de cinema, e uma curiosamente eficaz.

Produzido pela A24, que nos anos recentes tem respondido ao seu crescente prestígio trocando suas raízes independentes pela megalomania, o longa de estreia da cineasta Raven Jackson é essencialmente um filme-colagem. Não é justo, por exemplo, dizer que ele não tem trama - a trama está aqui, sim, no fluir da vida de Mack, desenhado com a ajuda de dispositivos de narrativa clássicos, se aproximando de chavões de gênero (há algo do gótico sulista americano aqui), se esforçando para sintetizar a experiência humana em uma mensagem impossivelmente simplificada. O que acontece é que Jackson, também creditada com o roteiro do longa, embaralha a cronologia dessa história e entrecorta entre um tempo e outro sem prévio aviso ou recurso visual que guie o espectador, criando assim um filme contado pela divagação da memória e das imagens retidas nela.

Daí também que vem o cacoete visual mais emblemático de Todas as Estradas de Terra: a fascinação da fotografia, assinada por Jomo Fray (que pode dar as caras no Oscar 2025 pelo trabalho em outro filme, Nickel Boys), por planos-detalhes de mãos. Há mais mãos do que rostos no longa, como os críticos de Letterboxd prontamente apontaram, e essa descentralização dos sujeitos da câmera não só adiciona texto ao filme - para Jackson, parece que o cerne de quem somos está em quem ou no quê tocamos, e como os significados desses toques se transformam com o passar das décadas -, como também ajuda a cineasta a sugerir ao espectador a frequência interpretativa na qual quer que sua obra seja entendida. Todas as Estradas de Terra quer que você preste atenção ao que ele evoca, muito mais do que ao que acontece nele.

Até por isso que Jackson prefere se ater a recortes menos centrais dos eventos sísmicos da vida de Mack. Seu roteiro se demora nos momentos após as decisões mais relevantes da vida dela, sugerindo (com muito acerto, há de se dizer) que nos lembramos mais dos momentos de alívio onde as coisas se encaixam nas nossas trajetórias do que do suor e do estresse que resultaram nesse tal encaixe. É uma escolha que, junto com a particularidade da fotografia, exige do elenco uma habilidade de trabalhar o implícito e a linguagem corporal de forma extraordinariamente eloquente - e, embora Charleen McClure segure habilmente o centro do filme como a versão dominante de Mack, são nas aparições raras de Sheila Atim que Todas as Estradas de Terra encontra a sua potência humana mais evidente.

A sua Evelyn pontua o filme, de fato, muito como uma figura materna pontua a nossa existência: como referência emocional para muita coisa, mas presença física que vai diminuindo com o tempo, e cuja ausência pode ser igualmente definidora. Em performance que se mostra igualmente lânguida e sólida, capaz de exprimir verdades, ressentimentos e triunfos que não estão na tela, mas das quais o filme precisa que tenhamos consciência, ela é o veículo perfeito para o cinema narrativamente indireto que a sua diretora propõe. E ainda bem, porque, quando essa proposta funciona, Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal é um pedaço de arte absurdamente sedutor.

Nota do Crítico
Ótimo
Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal
All Dirt Roads Taste of Salt
Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal
All Dirt Roads Taste of Salt

Ano: 2023

País: EUA

Duração: 92 min

Direção: Raven Jackson

Roteiro: Raven Jackson

Elenco: Moses Ingram, Charleen McClure, Kaylee Nicole Johnson, Sheila Atim, Chris Chalk

Onde assistir:
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