Top Gun Maverick é a celebração masculina que Matrix Resurrections não foi

Créditos da imagem: Paramount/Divulgação

Filmes

Crítica

Top Gun Maverick é a celebração masculina que Matrix Resurrections não foi

Reboot+continuação faz da eterna juventude de Tom Cruise toda a sua razão de ser

Omelete
5 min de leitura
13.05.2022, às 16H13.
Atualizada em 24.05.2022, ÀS 15H23

Num primeiro momento a premissa de Top Gun: Maverick parece discutível, ou francamente ridícula: recolocar Tom Cruise no papel como se pouco houvesse mudado para Maverick ao longo desses 36 anos, enquanto os coadjuvantes imediatos ao seu redor mimetizam os papéis e as situações do filme de 1986. Miles Teller aparece de bigode, camisa havaiana e também toca “Great Balls of Fire” no piano do bar, como Anthony Edwards. Agora é Glen Powell que vive o cadete loiro sem escrúpulos que antagoniza com o herói, como fazia Val Kilmer. A cena do vôlei de praia só é substituída por uma de futebol americano na areia.

O fato de Tom Cruise ter se tornado nos últimos 15 anos uma bem-sucedida franquia de si mesmo, transformando inclusive cacoetes como a corridinha com careta em movimentos de assinatura (ele também dá seus piques em Top Gun: Maverick), é o que autoriza o diretor Joseph Kosinski a apostar numa variação temerária da fórmula reboot+continuação. Diferentemente de um O Despertar da Força, que rebaixa o elenco de legado a papéis secundários enquanto escolhe uma nova geração para reprisar situações de protagonismo, aqui não há troca de posições: é como se Tom Cruise operasse num plano à parte, o único “autêntico”, enquanto tudo ao seu redor existe no filme sob o signo do descartável.

Não vai ser por acaso então se Top Gun: Maverick falar essencialmente ao público masculino na faixa dos 40 anos. Ao contrário da maioria dos chamados requels, pensados para reapresentar franquias velhas aos adolescentes de hoje, este Top Gun entende que seu principal ativo é o “fazer à moda antiga”. O filme apela mais uma vez para a nostalgia maniqueísta, típica da Guerra Fria, do lobo solitário americano versus os tecnocratas de farda, e chega pronto para atender essa demografia emasculada, que perdeu suas convicções para o discurso identitário no novo milênio.

Como personagem, o próprio Pete “Maverick” Mitchell é a personificação do individualismo, então parece até óbvio que o novo filme escolha rechaçar o rejuvenescimento de elenco como um imperativo mercadológico. Substituir ou rebaixar Tom Cruise seria o equivalente a trocar Leslie Nielsen em Corra que a Polícia Vem Aí, porque, como Maverick, o tenente Frank Drebin também habita um plano à parte do real, vivendo sob regras que ele mesmo cria. Aqui, Maverick se aliena, e a trama escrita por Ehren Kruger, Eric Singer e Christopher McQuarrie extrai o potencial dramático disso, fazendo de Maverick o lobo solitário anacrônico não apenas no trabalho mas também na vida afetiva. 

O resultado é que Top Gun: Maverick está muito mais próximo de um Matrix Resurrections do que se poderia imaginar. Ambos tomam o ponto de vista de seu protagonista como a verdade do mundo, para fins opostos: em Matrix, para desconstruir esse mundo, e em Top Gun: Maverick, para confirmá-lo. Assumir a passagem do tempo e a artificialidade por trás do makeover-de-franquia é o que dá a esses dois filmes sua sustentação. Não parece coincidência que, na cena da festa no bar, enquanto Miles Teller toca ao piano, Cruise repasse em um flashback granulado as cenas do velho Goose no filme de 1986, a exemplo do que acontece em Resurrections para diferenciar, na textura das imagens, o século XX do XXI. 

Como observador imutável das mudanças ao seu redor, Maverick se torna depósito vivo das coisas, e a câmera de Kosinski se revela muito sensível para capturar o semblante de Cruise nesses momentos, quase sempre em plano-médio ou close-up, e quase sempre abençoado pelos raios de luz natural da Califórnia - o principal tributo que Kosinski paga aqui ao diretor do filme original, Tony Scott, lembrado in memorian durante os créditos finais. Sondar o que se guarda iluminado por trás do sorriso perfeito de Tom Cruise talvez seja o grande prazer secreto do filme. Obviamente, o ator se esconde bem como uma Mona Lisa e não parece disposto, ao contrário do Neo de Keanu Reeves, a ceder ao peso dos tempos. Maverick observa o mundo e sua única paz possível é confirmar que tudo lhe pertence, como no final da cena do futebol na praia. Neo abriu mão de voar como um super-herói mas Maverick e Cruise nunca foram tão sobre-humanos quanto agora - não apenas no fetiche de atuar sem dublês em condições extremas mas também sobre-humanos na própria disposição de se fazer ícone e enigma além do tempo.

O momento arrebatador desse processo não seria outro senão o reencontro entre Tom Cruise e Val Kilmer, ator cuja batalha debilitante contra um câncer na garganta foi documentada no filme Val, de 2021. A cena é o ponto central na defesa que este Top Gun faz da grande viagem narcísica de Maverick porque, diante da figura frágil de Kilmer, seu antigo antagonista, a juventude de Cruise (três anos mais novo, 15 centímetros mais baixo) parece de fato operada por um inabalável senso de vontade, propósito ou destino. Não é sem uma ponta de crueldade que Kosinski contrapõe Tom Cruise - que então carrega consigo os privilégios masculinos que o filme almeja reconstituir - a uma galeria de atores colocados em posição de subalternidade, ora vítimas do tempo, como Kilmer, ora reféns da situação, como a meia-dúzia de atores de 30 anos com nomes esquecíveis cujo trabalho é repetir frases ditas por outros atores quase 40 anos atrás. 

Naquela época, Val Kilmer e Tom Cruise estrelaram em Top Gun um dos embates homoeróticos mais famosos do cinema americano. Na repetição que Top Gun: Maverick propõe, privilegiando o performático e o teatral para sublinhar sua natureza de farsa, qualquer outra eventual tensão homoerótica compreensivelmente se esvaziaria de sentido. Isso acontece também porque, na lógica do narcisismo, o objeto que define o desejo não é o outro, e sim a imagem de si mesmo. Cercado de jovens padronizados e senhores emasculados, resta a Tom Cruise o prazer da sua própria companhia, o último homem vivo no mundo de Top Gun.

Nota do Crítico
Ótimo
Top Gun: Maverick
Top Gun: Maverick
Top Gun: Maverick
Top Gun: Maverick

Ano: 2022

País: EUA

Duração: 131 min

Direção: Joseph Kosinski

Roteiro: Ehren Kruger, Christopher McQuarrie

Elenco: Tom Cruise, Jennifer Connelly, Miles Teller, Jon Hamm

Onde assistir:
Oferecido por

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.