Não é só a narração de Will Patton, transbordando de sabedoria e calor, que faz Train Dreams parecer um livro. Parece óbvio dizer isso, já que o filme é uma adaptação da obra homônima de Denis Johnson, mas há uma qualidade literária para o trabalho do diretor Clint Bentley. Cada corte é uma página virada. Sua direção parece capturar a passagem das coisas. Do tempo, das estações. Das vidas.
Destas, a principal é a de Robert Grainier, interpretado por Joel Edgerton numa atuação que parece comunicar as facetas e emoções do personagem em cada ruga, olhar e gesto. A vida de Grainier acontece num período fascinante. Train Dreams acompanha seus 80 anos, do fim do Século 19 até a era das corridas espaciais, e encontra neles o recorte perfeito para examinar não só a natureza das mudanças, como também as mudanças na natureza, sejam elas orgânicas ou causadas por mãos humanas. O próprio Grainier é um desses responsáveis: trabalhando como lenhador por décadas, ele atravessa um Estados Unidos ainda cicatrizado pela Guerra Civil e enxerga em colegas anônimos, amigos íntimos e amantes eternos a representação de temas atemporais.
Há o racismo contra imigrantes, um tipo de violência que ele vê de perto mais de uma vez. Há o surgimento de pontes, costurando e conectando o país e o levando mais e mais longe de casa. No seu lar, aliás, há também o romance. Este surge com Gladys (Felicity Jones), com quem ele rapidamente se casa e tem uma filha, e cuja presença e ausência marcam pontos altos e baixos do tempo de Grainier aqui. Não é um spoiler dizer que o personagem experimenta grandes alegrias e tristezas profundas no processo, mas mais do que dramatizar acontecimentos, Train Dreams está interessado na poesia do ajuntamento destes dias. No cotidiano, ora extraordinário, ora banal, de um homem simples. Alguém sem grandes legados ou feitos. Grainier tem uma personalidade específica, vive num local específico e num momento pra lá de específico. Ainda assim, ele é um ótimo representante para todos nós.
Isto porque o roteiro de Bentley e Greg Kwedar (invertendo a dinâmica de Sing Sing, que teve Kwedar como diretor e Bentley como um dos roteiristas) não está interessado em transformar Train Dreams na grande jornada do homem branco construindo a América. Isto não é O Brutalista. O alvo do filme está no todo, e em todos. Tão interessante quanto o próprio Grainier são os coadjuvantes com quem ele cruza uma ou duas vezes. Um de seus poucos amigos nas viagens para cortar madeira é Art Peeples, alguém inesquecível devido à dialética divertida e, em especial, à atuação de William H. Macy, com sua capacidade ímpar de combinar o mais honesto sorriso com os mais tristes olhos. Mais tarde em sua vida, Robert desfruta da companhia de Claire (Kerry Condon, um relâmpago de alegria), uma observadora florestal que o ajuda a entender seu lugar na grandiosidade ao seu redor.
Sem cair no sentimentalismo, Train Dreams entende seus personagens como parte de um ecossistema, de uma fauna e flora que refletem, desafiam, destroem e criam tanto quanto nós. Enxergar tudo isso através dos olhos do filme, e de Robert, é especial. Edgerton, um ator cujo exterior duro e áspero sempre foi contrastado pela sua capacidade de expressar carinho e vulnerabilidade, tem nesse papel o espaço ideal para exercer suas melhores qualidades como ator. Em suas mãos, e especialmente graças a seu rosto, Grainier é tanto guia quanto espelho. Enquanto ele preenche a lente poética e efêmera do diretor de fotografia Adolpho Veloso, observamos como o tempo e as condições mudam o homem e o mundo, e somos enfim levados a contemplar nosso lugar nisso tudo.
Também importante é como Bentley entende a importância do mistério no meio disso tudo. Ou, para ser mais preciso, do mistério que está pouco a pouco dissolvendo conforme o avanço tecnológico asfixia os vácuos da imaginação. Em contrapartida, o filme descobre espetáculo e deslumbramento ao colocar Robert, um homem que viveu rente ao chão em trens e cavalos, diante de um avião. Se fosse necessário resumir a força do filme, seria ao descrevê-la como a de uma testemunha.
Train Dreams chega à beira de sugerir um espírito nas árvores por onde Grainier caminha, mas cria um espírito ao passear entre elas. Tanto Robert quanto nós somos transformados em observadores, do tempo, da terra e de nós mesmos. A maior parte dos filmes existem como uma obra de arte na tela, algo que vemos e deixamos. Alguns, como Train Dreams, fazem algo ainda mais especial. Eles destroem os limites. Vivem dentro de nós, e nos deixam viver dentro deles.
Crítica escrita em 31 de janeiro de 2025 no Festival de Sundance. Adquirido pela Netflix, Train Dreams ainda não tem data de estreia no Brasil.
Ano: 2025
País: EUA
Duração: 1h42 min
Elenco: William H. Macy, Joel Edgerton, Kerry Condon, Felicity Jones