A adaptação de Daniel Rezende de Turma da Mônica: Laços, de 2019, foi um presente aos fãs da turminha. Fiel à HQ homônima de Vitor e Lu Cafaggi, o diretor foi capaz de transpor a história das páginas para as telas com uma habilidade deliciosa de assistir, se divertindo ao dar movimento aos personagens de Mauricio de Sousa ao mesmo tempo que traduzia de modo absolutamente fidedigno a magia dos gibis. Até por isso, é surpreendente que, dois anos depois, Rezende tenha conseguido se superar fazendo o contrário do que fez em Laços: na sequência Turma da Mônica: Lições, o acerto foi a ousadia de ir além das páginas.
Quando estreou em 2019, Laços não passou a impressão, de jeito algum, de ser “apenas o primeiro de uma saga”. Aquele era um filme completo em si, sem necessidade de continuação, uma história de amizade e companheirismo que funcionou perfeitamente bem por si só. É curioso, portanto, o sentimento que Lições causa por seu antecessor. Agora, a impressão que passa é que Laços foi um teste do que o diretor e sua equipe conseguiriam fazer, para que tivessem a permissão para brincar muito mais com o universo, com imaginação e atrevimento. Hoje, parece que Laços esteve lá para estabelecer o solo para o que viria depois.
São dois sentimentos distintos e igualmente válidos, preciosos para o olhar do fã. Quando um diretor se mostra capaz de traduzir todo um universo literário para as telas, a emoção é de enxergar aquele mundo imaginário tomando vida. O exercício seguinte, destaque de Lições, é o brilho que vem de alguém que entende perfeitamente o significado de tudo aquilo - e sabe levar a essência para algo inovador e inesperado.
A premissa do novo filme vem diretamente da HQ. Aqui, a turminha se dá mal quando um plano de fugir da escola acaba com uma Mônica de braço quebrado, e o núcleo de adultos do Bairro do Limoeiro toma a decisão de afastar a dona da rua de seus inseparáveis companheiros, Magali, Cebolinha e Cascão. O amadurecimento - e as lições que com ele vêm - chegam com a jornada distinta, uma que leva Mônica para uma nova escola, Cebolinha para o fonoaudiólogo, Cascão para a natação e Magali para uma aula de culinária.
O primeiro acerto de Turma da Mônica: Lições vem precisamente deste afastamento, um que não funcionaria se cada um dos integrantes do elenco não estivesse absolutamente confiante em seu papel e surpreendentemente maduro em atuação. Já falei em minha crítica de Laços e falo de novo - Giulia Benite, Kevin Vechiatto, Gabriel Moreira e Laura Rauseo são a turminha, e enquanto em Laços todos se complementavam, Lições lhes dá a oportunidade de brilhar isoladamente. A habilidade de cada um deles é notável - mas Lições entrega muito do peso emocional à Benite, que aperfeiçoa sua técnica e encanta como poucos.
Por falar em maturidade, isso não vem apenas do elenco. As decisões da própria trama - as mesmas que afastam a história do gibi - tiram proveito da personalidade de cada um dos personagens para aprofundar temas nunca tocados antes pelas páginas. A segurança de traduzir o apetite de Magali em ansiedade, ou de desenvolver o conflito entre as crianças no núcleo dos adultos, são movimentos sagazes, importantes, e mais que tudo, coerentes. É aqui, principalmente, que o roteiro de Thiago Dottori e Mariana Zatz se sobressai. Lições demonstra uma habilidade linda de entender a natureza da obra e levá-la além, jogando os protagonistas em jornadas que, por mais surreal que pareçam, nunca tiram os pés do chão.
E se o roteiro ousou mais, ele foi acompanhado, claro, por Rezende, que literalmente tirou a câmera do trilho para se divertir muito mais no movimento. Flutuando com confiança entre emoções mais sutis, o ritmo de aventura e momentos de tensão, Rezende tira proveito da oportunidade de aliar câmera e personagens de um jeito inédito. Em Lições, ela funciona como complemento aos sentimentos da turminha, harmonizando principalmente nas cenas de maior fragilidade da Mônica. A sintonia entre Rezende e Benite, inclusive, talvez seja o maior triunfo de Turma da Mônica: Lições.
Isso porque o novo filme demanda muito mais de seu elenco, e encontra em Mônica, Magali, Cascão e Cebolinha um canal para tratar de temas difíceis de modo que apenas um filme infantil conseguiria fazer com tanta graça. A quantidade de lágrimas não é pouca, e a emoção flui, cresce e alivia de modo natural, com muito drama e sem forçação de barra. No caminho, para encantar enquanto ensina, Lições ainda se diverte com o fantástico canalizado no personagem de Do Contra, uma das melhores adições ao universo live-action da turminha.
Por fim, é difícil falar de Lições sem mencionar o fan service, tão presente em adaptações, e enquanto a moda é abusar do amor do fã para distraí-lo, aqui a introdução de elementos faz parte da trama, e quase nunca é gratuita. Claro, a aparição certeira de Mauricio de Sousa existe pela graça do momento, mas a decisão de incluir o Humberto no fonoaudiólogo ou de trazer o núcleo de jovens adultos de Tina e Rolo para servir de mentores da Mônica, são tão originais quanto espertinhas, e fazem de Turma da Mônica: Lições o caso raro de produção que sabe usar o serviço de modo integral à jornada. Aqui, existe um equilíbrio entre celebração e cuidado admirável de assistir.
Francamente, é difícil encontrar um elemento de Turma da Mônica: Lições que não mereça aplausos. Apesar de adaptar a segunda HQ de uma trilogia, a produção encerra-se perfeitamente, concluindo uma jornada que não necessitaria de um terceiro filme. Até por isso, com animação vem também hesitação pelo futuro, um que se abre por completo após o sucesso dessa nova tentativa. O receio, no entanto, deve ser inútil, porque a produção de Lições deixa bem claro saber o que está fazendo, e o faz com bom gosto e carisma de sobra.
Direção: Daniel Rezende
Elenco: Malu Mader, Giulia Benite, Kevin Vechiatto, Laura Rauseo, Gabriel Moreira, Mônica Iozzi