Dita o princípio dramático conhecido como “arma de Tchekhov” que, se você apresenta ao público um revólver carregado no primeiro ato de uma peça, é imprescindível que ele dispare no terceiro. A ideia, introduzida é claro pelo dramaturgo e escritor russo Anton Tchekhov, é chamar a atenção para intencionalidade da narrativa como experiência guiada pelo autor - dentro de um mundo inundado de possíveis detalhes, o espectador sempre estará prestando atenção naquelas coisas para as quais você direciona a atenção dele, então é bom que elas tenham alguma serventia, seja prática ou temática, na história que você está contando. Em Two Women, comédia canadende exibida no Festival de Sundance 2025, a atriz Sophie Nélisse (Yellowjackets) interpreta essencialmente uma “arma de Tchekhov”... que nunca é disparada.
Ela é, a grosso modo, a vizinha fofoqueira das duas protagonistas da história: Florence (Karine Gonthier-Hyndman) e Violette (Laurence Leboeuf), donas de casa no subúrbio canadense que se rebelam contra seus maridos ausentes e desinteressados através de pequenas aventuras extraconjugais com entregadores, encanadores, pintores, faxineiros e outros prestadores de serviço. Conforme a vida das duas vai se entrelaçando, e as relações familiares se desgastando, o filme usa a jovem Jessica, interpretada por Nélisse, como uma forma de pontuar repetidamente as formas como a contemporaneidade vai sufocando as expressões de feminilidade e prazer de uma nova geração… mas o confronto entre o ponto de vista dela e o das duas protagonistas nunca chega às vias de fato, e a personagem some, lá pelo terceiro ato, sem ter um impacto real na trama.
Essa é uma das inadequações dramáticas que ficam claras no trabalho da roteirista Catherine Léger, conhecida no Canadá por peças e filmes que exploram a liberdade sexual feminina - vide Charlotte Quer se Divertir e Babysitter. Aqui, ela trabalha a partir de um texto mais antigo: Two Women é um remake de Deux Femmes en Or, de 1970, considerado um dos longas mais importantes da história do Quebec (província canadense francófona que tem longa tradição cinematográfica). O desafio da nova versão era atualizar alguns textos antiquados do filme de Claude Fournier, e abraçar nas personagens os desafios da feminilidade do século XXI, sem perder o apelo cômico e a atitude positiva em relação ao sexo que transformaram Deux Femmes en Or em um clássico.
Estritamente nesse sentido, a diretora Chloé Robichaud (Sarah Prefere Correr) é inegavelmente bem sucedida - muito por causa dela, Two Women é um filme eloquente e bem humorado, que se encontra com facilidade nos ritmos peculiares da vida suburbana. Robichaud, sua diretora de fotografia Sara Mishara (O Golpe de Milhões) e seu montador Matthieu Bouchard (Pillow Talk) tiram de cenários muitas vezes repetitivos algumas imagens de simetria genuinamente prazerosas, além de apostar acertadamente em uma iluminação quente que se contrapõe com efeito agradável à paisagem gélida do Quebec. Já nas seleções da trilha sonora, salpicada de pop rock feminino franco-canadense oitentista e noventista, o filme encontra uma forma de datar e expressar, num campo emocional muito eficaz, as suas personagens e os arcos de liberação que são necessários para elas - a música que elas amavam na juventude pregava uma liberdade e um ímpeto vital que não se traduziu na feminilidade adulta.
O texto de Léger, pelo lado bom, claramente entende essas mulheres com profundidade irrepreensível. A roteirista ainda demonstra desenvoltura em criar diálogos que refletem as balizas filosóficas nas quais elas buscam o prazer, sem quebrar a ilusão de imersão nesse mundo muito próximo do nosso. Two Women reflete muito sobre a angústia feminina (não só feminina, mas distintamente feminina) contemporânea de ser responsável pelo planeta, pela integridade da família, por ser “um bom exemplo”... e sobre como todas essas responsabilidades esmagam os processos moralmente complicados, e naturalmente desorganizados, de construir uma vida que reflita nossas vontades, que nos preencha como seres humanos.
No olhar ressabiado de suas protagonistas, tão diferentes mas tão unidas pela vontade de escapar desse dilema impossível (são ótimas performances complementares, mas Gonthier-Hyndman vira o coração do filme como a impulsiva Florence), Two Women encontra-se como a história prazerosa de retorno ao prazer que ela precisava ser. Se há um ou outro obstáculo estrutural pelo caminho, e até por isso o final chega um pouco abruptamente, pelo menos a jornada até lá é divertida.
Ano: 2025
País: Canadá
Duração: 99 min
Direção: Chloé Robichaud
Roteiro: Catherine Léger
Elenco: Félix Moati, Laurence Leboeuf, Karine Gonthier-Hyndman, Sophie Nélisse