Dez filmes. Quando uma franquia alcança essa marca, seu principal desafio é vencer o cansaço: tanto o tédio dos realizadores, que imagina-se a essa altura terem explorado e aperfeiçoado tudo o que a franquia permitia, quanto a tolerância dos espectadores, cuja suspensão de descrença é posta à prova em mais uma narrativa episódica e circular justificada pelo excesso.
Velozes e Furiosos chega a essa marca em um filme cujo apelo principal, em teoria, é encerrar a fatura. Não se trata, portanto, de trazer submarinos ou espaçonaves à mistura, mas começar a se despedir dessa família cada vez mais numerosa. É por isso que voltam os rachas dos primeiros Velozes (ainda que de forma muito modesta) e é por isso que a trama escolhida incorpora literalmente o caráter circular. Ao reencenar a ação de Velozes e Furiosos 5 para mostrar que o vilão interpretado no Rio de Janeiro por Joaquim de Almeida havia deixado um filho órfão, a franquia se fecha em si mesma e, de quebra, homenageia aquele que é o melhor filme dos dez (o cofre arrastado pelas ruas ainda arrepia).
Ao contrário de um Vingadores: Ultimato, Velozes e Furiosos 10 não faz a partir dessa premissa um exercício de nostalgia. O motivo parece ser muito simples e até cômico: não há muita nostalgia a sentir em relação ao rastro de destruição deixado filme após filme, nem em relação ao contingente de personagens definidos pela funcionalidade. Velozes e Furiosos se aproxima muito dos filmes-catástrofes nesse sentido. O valor primeiro do seu espetáculo são a descartabilidade (todo objeto ou cenário pode ser dizimado, substituído) e a reciclagem (todo vilão se torna candidato a aliado em seguida); qualquer reminiscência carinhosa que se tire disso, então, automaticamente adquire um certo caráter de desvio.
Se Velozes e Furiosos 10 resulta um filme irresistível é porque faz caber em perfeita harmonia as duas coisas: o desvio e a norma.
A norma é encadear uma cena de ação na outra sem deixar o ritmo cair, com todas as conveniências de roteiro que a essa altura nós permitimos de Velozes (a vantagem desses 20 anos de dieta de filme de super-herói é que não estranhamos mais quando personagens aparecem de repente, saltando em cena, do nada). Isso fica sob a responsabilidade de Louis Leterrier, o diretor contratado às pressas para substituir Justin Lin quando as câmeras já estavam rodando. Leterrier é um grande artesão de ação e ele torra o orçamento gordo de US$300 milhões sem descuidar da decupagem e da coreografia de câmera. O fato de o roteiro separar a família em pequenos núcleos favorece a ação: as cenas são mais curtas e retêm um senso de urgência e variedade, como a luta entre Michelle Rodriguez e Charlize Theron, ou a sequência breve com Jason Statham. A sensação é que Velozes se depura e fica mais leve, ante os filmes 8 e 9, marcados essencialmente pelo inchaço.
Ou seja, a norma é andar em linha reta mesmo nas distrações, responder a um chamado de eficiência e agilidade, e principalmente não deixar muito respiro para que o espectador questione motivos e causalidades. Vai tocar um funk carioca na cena na Antártica e vai tocar um reggaeton na cena no Rio de Janeiro - e tudo bem. Uma vez que assumimos que tudo meio que se esvazia de sentido, já que as coisas são marcadas pela inconsequência e pela uniformidade (desde as grandes explosões que não matam ninguém até pequenezas como o fato de todo personagem ser igualmente especialista em luta e volante), o que vai dar um lastro a Velozes 10 é justamente o desvio.
Ninguém se sente mais precocemente nostálgico por Velozes do que Vin Diesel. Vamos considerar a hipótese de que nenhuma outra pessoa no mundo compartilha dessa nostalgia (já que estabelecemos aqui ser um sentimento desviado): isso só torna os caprichos do ator/produtor mais românticos. Vin Diesel forçou a saída de Justin Lin? O afastamento de Dwayne Johnson? Só pode ter sido por amor à causa - ou à cruz, que Dom carrega no peito. As cenas em que Dom fica revendo fotografias dos familiares na garagem, no carro ou na parede têm aquele tom alaranjado de sentimentalismo que Michael Bay nos ensinou a esperar nos seus contraluzes - uma assinatura visual plenamente assimilada por qualquer blockbuster de ação hoje em dia, cuja missão é atender tanto ao público adulto masculino quanto às demandas de comoção do filme-família. Com Vin Diesel, porém, o clichê emotivo reconquista um fundo de verdade. Seria até quixotesco se Dom não fosse um personagem tão competente no que faz melhor, ou seja, destruir.
É por isso que a dinâmica do protagonista com o novo vilão interpretado por Jason Momoa parece funcionar tão bem. Se Diesel representa a autoindulgência do texto sentimentalista e essa noção deslocada de pertencimento e propósito, Momoa chega para oferecer o oposto, um vilão igualmente indulgente na canastrice, uma mistura de Jack Sparrow e Coringa, mas em uma chave autoconsciente de si. Quando o vilão tenta matar um dos heróis e ironiza que a família vai perder um integrante do churrasco, essa tirada quase metalinguística (sabemos que os filmes sempre se encerram com a refeição da família) tem acima de tudo o efeito de testar a convicção de Dom na consistência do universo ficcional que Diesel criou.
Velozes 10 é um filme inconclusivo, como se sabe, e a história pode agora ganhar mais um ou dois longas-metragens antes de se encerrar. A disputa já tem um round definido, porém: Momoa ameaçou a integridade da fantasia com seus comentários irônicos e de algum modo Vin Diesel e Cia. permanecem de pé, vitoriosos na sua crença de que a franquia tem, sim, um páthos próprio para além do bombástico e da visível artificialidade do CGI. Enquanto a grande maioria dos filmes grandes hollywoodianos se refugia no cinismo, Velozes e Furiosos se recusa bravamente a quebrar a quarta parede, piscar para a câmera e ironizar a si mesmo. (Quem diria que no fim uma parede ainda terminaria inteira.)
Ano: 2023
País: EUA
Classificação: 14 anos
Duração: 141 min
Direção: Louis Leterrier
Roteiro: Justin Lin, Dan Mazeau, Gary Scott Thompson
Elenco: John Cena, Ludacris, Tyrese Gibson, Nathalie Emmanuel, Michelle Rodriguez, Jason Momoa, Vin Diesel, Daniela Melchior, Brie Larson