Venom - Tempo de Carnificina desperdiça potencial e se acomoda na autoironia

Créditos da imagem: Sony Pictures/Divulgação

Filmes

Crítica

Venom - Tempo de Carnificina desperdiça potencial e se acomoda na autoironia

Continuação apara arestas e acha um tom depois de um primeiro filme disforme

07.10.2021, às 12H40.

Um aviso que vale não apenas para Venom - Tempo de Carnificina mas também para a maioria dos filmes hoje em dia, já que é uma tendência cada vez mais constante: se um filme está investindo na excentricidade, e precisa sempre colocar um personagem neutro dentro de cena para comentar o que vê e apontar o dedo para essa excentricidade, então não é um investimento feito de fato, certo? Está mais para uma apólice de seguros: uma coisa nunca vai ser excêntrica demais, a ponto de melindrar a sensibilidade do espectador, se o próprio filme trata de desarmar a intenção com o comentário em cena.

Essa forma de ironia projetada para garantir um nível seguro de ousadia está aí, amplamente usada na produção americana, e é a ela que Tom Hardy e Andy Serkis recorrem para tornar esta continuação um filme mais uniforme do que o Venom de 2018. Realizado na esteira do humor de Deadpool, o primeiro longa do simbionte atirava para vários lados na tentativa de ser sombrio, desvairado e cool ao mesmo tempo. A continuação chega agora com mais ou menos as mesmas intenções, mas o que o torna mais domesticado, por assim dizer, é justamente a autoironia.

Na trama, o jornalista Eddie Brock (Hardy) visita o assassino Cletus Kasady (Woody Harrelson) na prisão e, a partir da parceria com o seu simbionte, consegue transformar o testemunho do maníaco em pistas para encontrar os corpos que Kasady enterrou em San Francisco. Isso devolve prestígio a Brock, que no mais continua ferrado, largado pela mulher e preso ao esfomeado alienígena. Quando Kasady escapa da cadeia no dia da sua execução, as coisas pioram sensivelmente para o anti-herói do título.

Toda essa premissa narrada acima transcorre numa montagem de Venom - Tempo de Carnificina que não deve ter mais de dez minutos: a análise das pistas, a descoberta dos corpos, a fúria de Kasady, o sucesso de Brock. Nesse momento, o diretor Andy Serkis parece mostrar a que veio, forçando o espectador a acompanhar a rapidez das relações de causa e efeito, e impondo à exposição um ritmo verdadeiramente ousado (para os padrões dos blockbusters de hoje). Tempo de Carnificina começa sugerindo que não fará concessões narrativas, portanto.

Por um instante, parece que estamos diante de uma proposta similar àquela feita pelo diretor Adam Wingard no seu Death Note: organizar a história a partir de caricaturas e situações-clichê de investigação e perseguição numa velocidade acelerada, e usar essa correria desenfreada para borrar expectativas e limites. Quando Kasady se transforma no Carnificina, então, essa promessa no filme se enche de potencial; vê-lo sorrindo à beira de uma maratona de destruição traz à memória o Woody Harrelson de Assassinos por Natureza (1994), um dos filmes-modelos hollywoodianos de como saturar uma ideia de exagero até a sua expressão mais plena.

Portanto é uma pena que, diante dessa promessa, Venom - Tempo de Carnificina escolha se acomodar nos dois terços de filme restantes. A ação desacelera a níveis “normais” e, embora as trocas de diálogos entre Brock e o simbionte continuem incessantemente, a montagem do filme não se dinamiza para acompanhar esse ritmo. Em outras palavras, este Venom 2 - uma continuação privilegiada, que já não causa tanta estranheza depois do longa de 2018 e poderia se aproveitar disso para subir o volume - não é tão desatinado quanto poderia nem quanto se esperava.

Esse comodismo está expresso por toda parte, inclusive na trilha sonora de Marco Beltrami, indecisa entre investir numa composição mais triunfal, típica de blockbuster de super-herói, e seguir um caminho mais Danny Elfman e demarcar a estranheza com convicção. A forma como Serkis recorre à ironia no desenrolar da trama é a maior marca de uma certa autossabotagem, porque à medida em que o filme avança, vai ficando claro que a excentricidade é só uma fachada, usada por conveniência em situações falseadas para soar mais radical.

Já é possível ver que essa estratégia convenceu muito desavisado por aí: textos elogiando o suposto desvario do filme, que seria uma exaltação do bromance de Brock com Venom e inclusive faria a defesa da cultura gay (central em San Francisco, de toda forma) quando o simbionte sai do armário (Venom fala isso literalmente) e vai a um show de Little Simz para encontrar seus pares desconstruídos na balada. Comprar essa interpretação do filme é ignorar a diferença entre texto e subtexto: da mesma forma que a ironia é usada para desarmar intenções, o fato de Tempo de Carnificina abordar e satirizar o bromance não faz dele um filme de bromance.

Talvez a polarização do debate tenha mesmo prejudicado filmes como esses dois Venom, porque há obviamente valores na continuação que não se encaixam no “ame ou odeie”. O Eddie Brock de Tom Hardy, por exemplo, é um protagonista fascinante porque ele pode agir de fato como um anti-herói, no sentido de ser a antítese do que esperamos de um herói triunfante, afirmativo, enfim, de um protagonista digno desse nome. O simbionte é muito mais protagonista do que Brock! Nesse sentido, os filmes poderiam explorar melhor essa dinâmica desigual, da mesma forma que Tom Hardy é instrumentalizado como o brutamontes que possibilita o protagonismo de Furiosa em Mad Max - Estrada da Fúria.

O fato de Eddie Brock ser falho é obviamente seu traço de personalidade principal, mas o apelo desses dois Venom - que a despeito da opinião especializada são sucessos de bilheteria incontestáveis - talvez esteja também na possibilidade, estendida a todo hétero top desamparado na agenda progressista, de se sentir representado por esse anti-herói meio leso, repórter incompetente, socialmente inapto, mas que mantém seus exercícios de tríceps em dia. A coisa começa a ficar interessante quando entendemos que o bromance é só a fachada, a primeira camada: Eddie Brock veio para justiçar todos aqueles que o bonde da história atropelou, e o que seria o simbionte nessa história senão sua voz silenciada, xingando de dentro da cabeça nas redes sociais da vida.

Nota do Crítico
Regular
Venom: Tempo de Carnificina
Venom: Let There Be Carnage
Venom: Tempo de Carnificina
Venom: Let There Be Carnage

Ano: 2021

País: Estados Unidos

Duração: 90 min

Direção: Andy Serkis

Roteiro: Kelly Marcel

Elenco: Naomie Harris, Michelle Williams, Woody Harrelson, Tom Hardy

Onde assistir:
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