Tudo é possível no multiverso. A frase chegou a ficar saturada durante a divulgação de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, longa do universo cinematográfico Marvel que pretendia abrir de vez as possibilidades desse conceito, após explorações mais tímidas em Loki, Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa e What If…?. Mas, se tudo é possível no multiverso, porque o MCU nos mostra tão pouco dele?
O segundo filme do Doutor Estranho, sejamos justos, se permite sair um pouco da caixinha. Pelas mãos do roteirista Michael Waldron (também de Loki), conhecemos pelo menos meia dúzia de mundos paralelos, além de termos vislumbres rápidos de dezenas de outros. Aqueles em que ficamos, no entanto, são os que fazem mais “sentido” com o nosso, os que operam mais ou menos pelas regras (físicas, biológicas, emocionais) que já conhecemos.
Há detalhes diferentes, é claro - ruas alagadas, tecnologias distintas espalhadas pelos espaços públicos, estátuas e prédios onde não havia antes, vegetação em lugares e com morfologias distintas. O designer de produção Charles Wood faz hora extra para criar mundos convincentemente inquietantes em suas pequenas distinções, mas a verdade é que Multiverso da Loucura não está tão interessado assim em… bom, ser um filme sobre o multiverso.
Ao invés disso, tanto Waldron quanto o diretor Sam Raimi usam as múltiplas realidades como plataformas, ferramentas para fazer o que realmente querem. No caso do roteirista, trata-se de uma exploração honesta da diferença entre amor e posse, da necessidade de passar integralmente pelo luto para não acabar se segurando inutilmente a algo que não está mais lá - esse é o arco do Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch), da Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen), e até de America Chavez (Xochitl Gomez) no filme.
No caso de Raimi, enquanto isso, o multiverso é uma desculpa para desfilar técnicas e pirações visuais inspiradas pelo terror, gênero caro ao cineasta, que teve seu início na franquia Evil Dead. Por causa das múltiplas realidades, ele pode se esbaldar no visual de horror cósmico do primeiro monstro enfrentado por Estranho, na perseguição sombria à la slasher que acontece pelos túneis de um outro universo, no jogo gótico de luz e sombras do confronto entre duas versões do herói, no terror corporal grotesco do Estranho zumbi que protagoniza o clímax do longa… Tudo no mesmo filme.
Contraste isso com Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, longa dirigido e escrito pela dupla Daniels (Daniel Scheinert e Daniel Kwan), que está em cartaz nos cinemas brasileiros neste momento. Apesar de não ter a palavra no título, em muitos sentidos este é um filme muito mais “multiversal” que Doutor Estranho - melhor que ele não só por ter uma linha narrativa básica mais conectada com a humanidade que pretende representar, mas porque o conceito das realidades alternativas é muito mais integral à história que ele quer contar.
Sem o multiverso, essa seria (como já adiantava a primeira e hilária sinopse do filme) apenas a história de “uma mulher lutando para fazer o seu imposto de renda”. Para se tornar a reflexão épica sobre a natureza humana que é, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo precisava nos mostrar todas as vidas possíveis de sua Evelyn Wang, literalizar o seu debate interno pelas escolhas “erradas” e “fracassos” (sim, com aspas) que definiram a sua linha do tempo, e conduzi-la até a aceitação de que a doçura da sua existência só existe se pareada com a amargura dela.
Há um argumento a se fazer para Doutor Estranho no sentido de sua trama prática, seu plot, depender muito mais do multiverso do que a de Tudo em Todo o Lugar. O plano de Wanda para recuperar seus filhos, o predicamento precário de America, a deterioração da realidade constatada por Estranho… nada disso aconteceria em uma linha do tempo não fragmentada. Mas plot não é, de fato, o propósito de filme nenhum - contar uma história é muito mais sobre fazer o espectador sentir algo do que sobre levar o personagem de um ponto A a um ponto B (lição que, inclusive, boa parte do MCU ainda precisa aprender).
Crédito onde crédito é devido, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura está preocupado com o que nos faz sentir, mas sua jornada emocional independe dos universos alternativos aos quais nos apresenta. Talvez até por isso, além da rédea criativa curta do Marvel Studios, ele seja tão mais contido na conceituação desses universos, enquanto Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo se permite extrapolar os limites do sensato, do “bom gosto” e do “coerente” (sim, também com aspas!) em suas visões de mundos. Ou você acha que Doutor Estranho teria a audácia de transformar seus personagens em pedras que só falam pelas legendas na tela, piñatas penduradas em galhos de árvore, humanos com dedos de salsicha? Não, eu acho que não.
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo precisa nos mostrar o absurdo insondável da nossa existência, a pressão esmagadora das realidades infinitas nas quais não vivemos, a futilidade estapafúrdia de algumas delas, para nos dizer o que quer dizer: que, em meio ao impulso de achar que não importamos, que nada importa, se agarrar ao que temos e ao que amamos é ainda mais fundamental. Doutor Estranho 2 é um bom filme, mas nem sequer esbarra na questão central do conceito do multiverso - uma questão que Tudo em Todo o Lugar encara de frente, sem piscar, e da qual tira a resposta mais sublime e simples possível.