Jeremy Irons em Dungeons & Dragons (2000) e Chris Pine em Dungeons & Dragons (2023) (Reprodução/Montagem Omelete)

Créditos da imagem: Jeremy Irons em Dungeons & Dragons (2000) e Chris Pine em Dungeons & Dragons (2023) (Reprodução/Montagem Omelete)

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Os dois Dungeons & Dragons não são tão diferentes - exceto onde mais importa

Filmes de 2000 e 2023 são narrativas de chavões, mas só uma investe nos personagens

Omelete
5 min de leitura
13.04.2023, às 10H52.

Há de se admirar o empreendimento passional que estava por trás de Dungeons & Dragons - A Aventura Começa Agora (2000), primeira tentativa de Hollywood de adaptar o RPG de tabuleiro mais popular do planeta para a tela grande. E eu digo “de Hollywood” no senso mais geral possível, porque o D&D de 2000 foi em sua raiz uma produção independente, bancada com o suor e as lágrimas do produtor canadense Courtney Solomon, um grande fã da franquia, que investiu dinheiro próprio e rodou o mundo amealhando US$ 30 milhões de diferentes fontes para realizar o evento cinematográfico que sonhava para seu jogo favorito. Na época, aliás, D&D se tornou a produção mais cara da história a não ser diretamente bancada por um dos grandes estúdios americanos.

Também há de se admitir que, mesmo revendo-o 23 anos mais tarde, Dungeons & Dragons - A Aventura Começa Agora não é um bom filme (e, acredite em mim, eu adoraria dizer o contrário). Existem, sim, qualidades redentoras nele: no melhor estilo dos anos 1990, o design de produção caótico de Bryce Perrin e a fotografia cheia de luzes neon de Doug Milestone criam um blockbuster infinitamente mais interessante, no campo visual, do que qualquer coisa feita pós-2010 nos grandes estúdios. 

Um exemplo: o covil dos ladrões - liderados por um tipicamente divertido Richard O’Brien, conhecido por The Rocky Horror Picture Show - é uma babilônia de objetos empilhados, misturando-se em seus ornamentos e cores com os espaços apertados pelos quais os personagens circulam. Outro: quando o nosso herói Ridley (Justin Whalin, o Jimmy Olsen de Lois & Clark) entra na caverna onde precisa encontrar o MacGuffin da vez, seu caminho iluminado por sombras coloridas deságua em um amplo e abarrotado salão, adornado de ouro e pinturas rudimentares de dragões vermelhos. Por melhor filme que seja, o Dungeons & Dragons de 2023 não tem sequer uma ideia visual tão ousada quanto essas. 

Para além da elaboração estética, o primeiro D&D também tem o mérito de manter um ritmo firme em sua aventura - mesmo com 1h48 de duração, este é um filme vívido de acontecimentos, transformações dramáticas e dilemas morais, que nunca deixa o espectador à deriva ou entediado. Desde o lançamento do filme, em 2000, muito do peso das críticas caiu sobre os ombros de Courtney Solomon, que foi convencido pelos investidores (contra a sua própria vontade, de acordo com todas as entrevistas que deu na época e desde então) a dirigir o longa após tanto tempo e dinheiro investido em fazê-lo acontecer. 

Solomon nunca tinha dirigido antes, o que fica óbvio especialmente nas cenas de ação de Dungeons & Dragons, coreografadas sem impacto e filmadas dos ângulos mais constrangedores possíveis, deixando plenamente a mostra os golpes desferidos longe dos corpos dos oponentes e a limitação orçamentária das locações “medievais” encontradas pela produção em Praga, na República Tcheca. Do trabalho de efeitos especiais nem há muito a dizer - mesmo para um filme com um terço do orçamento dos blockbusters de grandes estúdios, feito duas décadas atrás, Dungeons & Dragons é lamentavelmente inadequado nesse sentido técnico, e pouco faz em termos de criatividade para suprir essa inadequação. 

Courtney Solomon dirige Jeremy Irons no set de Dungeons & Dragons (Reprodução)
Courtney Solomon dirige Jeremy Irons no set de Dungeons & Dragons (Reprodução)

Mas, veja bem, tudo isso importaria pouco em uma adaptação de D&D se o roteiro (que passou por muitas versões, mas acabou sendo creditado à dupla Topper Lilien e Carroll Cartwright) desse mais espaço para o que realmente importa: personagens. Em uma partida de tabuleiro em que grandes tramas de fantasia são urdidas e descritas por um narrador e as forças conjuntas de um grupo diverso de heróis construídos a partir dos caprichos dos jogadores precisa derrotar ameaças impensáveis, personagem é tudo. O espectador - ou jogador - precisa se importar, ou a tolice de todo o cenário colapsa em si mesma.

Não me leve a mal: eu também amo toda essa tolice. Até por isso, rever Dungeons & Dragons - A Aventura Começa Agora não foi uma experiência torturante: eu reconheci ali os chavões da alta fantasia, a construção arquetípica de cada um dos protagonistas e antagonistas, a megalomania exagerada desses últimos (especialmente filtrada por um Jeremy Irons que nunca parece menos do que lívido), e uma parte de mim se deliciou com tudo aquilo. Mas eu me vi indisposto a perdoar as deficiências do filme, mesmo em face de suas virtudes, porque não senti que a história que ele estava me contando importava.

Há no filme de 2000 um rascunho benévolo, ainda que genérico, de temática política sobre desigualdade de classes e o que cada um arrisca em suas tentativas de reformar o sistema - nada que jogadores da franquia não possam reconhecer de suas próprias campanhas, aliás. No entanto, o que incomoda é que não entendemos exatamente porque cada um dos heróis e vilões busca reter ou transformar a natureza do poder de sua sociedade, porque eles ensaiam desistências ou persistências quando obstáculos surgem à sua frente, de onde veio a lealdade que uns demonstram e as traições que outros esboçam.

Marlon Wayans e Kristen Wilson em Dungeons & Dragons (Reprodução)
Marlon Wayans e Kristen Wilson em Dungeons & Dragons (Reprodução)

Em completo contraste, Dungeons & Dragons - Honra Entre Rebeldes (2023) se dedica quase religiosamente aos vai-e-vens da vida de seus protagonistas, à sua união construída através de um senso de abandono e fracasso individual e comunitário. Daí que a irreverência do texto funciona, a reedição de clichês pode ser aproveitada como o exercício pop que é, e as ideias visuais meia-boca (apesar de um trabalho de câmera dinâmico) passam quase batidas. Porque nos importamos, porque entendemos, porque queremos estar com esses personagens. 

No fim das contas, a diferença fundamental entre um bom D&D e um mau D&D, uma boa história de fantasia e uma má história de fantasia - ou, talvez, só entre um bom filme e um mau filme - é mais humana do que mágica. Não importa com qual classe você joga.

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