Pense em uma mistura de vídeo-cassetadas, South Park, a Festa do Malandro e Casseta & Planeta. Eleve à milionésima potência. Isto é Jackass, programa de sucesso da MTV, levado aos cinemas americanos e agora lançado aqui direto em DVD.
Freud morreu decepcionado com a humanidade. Depois de décadas estudando os mistérios da mente humana concluiu que nenhuma análise resolve nossos dilemas. Mais do que isto: o homem não tem esperança de salvação. Ele se entregou à morte às vésperas da Segunda Grande Guerra, já no exílio, em plena constatação da barbárie que viria a ocorrer no mundo.
Se assistisse a Jackass, o pai da psicanálise confirmaria sua premonição.
Tanto o programa da MTV (fenômeno de audiência) como o filme agora lançado em DVD pode nos fazer pensar que caminhamos para a desintegração da espécie humana.
O filme trata de um grupo de rapazes que se divertem às custas do próprio flagelo. Típicos representantes da geração Y (nascidos entre 1980 e meados dos anos 90) o bando que representa delinqüentes da nossa era questiona todos os costumes com ações humilhantes para si e para qualquer um que esteja perto de suas investidas.
Jackass é um produto importantíssimo, obrigatório, especialmente para os jovens. Para quem tem mais de trinta é difícil agüentar: aqueles que nasceram antes de 1970, na época em que a hora de dormir era sagrada (não passava das 9 da noite), com refeições em família, lição-de-casa depois da escola com conferência da mãe. Não havia computador, nem Cartoon Network, o telefone era regulado. A palavra família significava mais do que uma instituição. Era o hábito.
Não. Jackass não é para esta galera.
A referência de família para os atuais jovens são Os Osbournes. Roqueiros antigamente tachados de esquisitos são agora queridinhos da juventude neste programa que acompanha as banalidades de seu dia-a-dia. Não é por acaso que também se trata de produto da MTV. Este canal tem se esforçado para fazer a cabeça das gerações mais novas com arriscados e inovadores programas. Tem conseguido.
Jackass também pode ser visto como um programa de família. Uma família de moços infantilóides, desbocados, irresponsáveis e emasculados. Sim, porque mamilos, pintos, sacos e ânus passaram a ser órgãos de choque para diversões diferentes das habituais. Aquele carinho especial pelos órgãos antigamente considerados mais preciosos não existe mais! A turma de Jackass coloca pequenos jacarés para morder o próprio mamilo, tubarões para mordiscar as partes baixas ou até os famigerados choques elétricos escrotais (utilizado para tortura em regimes clandestinos) foram reabilitados. Degeneração dos esportes radicais?
Programa e filme são despojados de efeitos, repleto de defeitos. Com roupas, não há com que se preocupar. A maioria dos rapazes está permanentemente pelada. Sugestão de certo homoerotismo, troca-troca. Momento brilhante: um deles lança um foguete cuja haste esta espetada no cu e desta haste sai um cordão que amarrado, eleva e quase arranca (arrrgh!!!) o pinto de outro. Os ambientes são os mais domésticos, rotineiros. Aliás, o que sublinha a ação de Jackass é: o que vamos fazer para sair da rotina? Mas não se enganem: A turma sabe o que faz. Em uma seqüência como skates e bicicross, podemos constatar que são pessoas talentosas. Poderiam ser dublês. É isto: Jackass é um trote aplicado por dublês!
David Cronenberg já havia mostrado em Crash que alguns podem ter muito prazer (semelhante ao sexo) com o flagelo corporal. Jackass fala do mesmo tema. A rapaziada goza com tiros de balas falsas, cortes, socos, quedas de enormes alturas, espinhos de cactos, miniaturas de carrinhos cuidadosamente colocados no ânus (apesar de grotesco, o momento mais hilário é o da reação do médico frente ao RX do sujeito com o objeto inserido...). Além deste festival de violência, a diversão continua com a celebração e cultos a vômito, fezes, urina e sangue. Há uma doce aproximação afetiva com os próprios excrementos.
O grotesco na cultura existe desde a idade média. Foram os padres os primeiros a serem estimulados pela igreja para enojarem os fiéis e manter, assim, a linha crédula das populações pelo asco ou medo. Excrementos eram a diversão em romances de Rabelais, nos quadros de Archimboldo.
Não há novidade na sátira pelo nojento, pela referência ao sexo de forma degenerada. O que choca é que, desta vez, Jackass, fenômeno de massa fala disto tudo aplicado aos próprios protagonistas. A diversão ocorre à maneira do Marques de Sade e Jean Genet. Ao vivo, em cores e em grupo! Tipo molecagem sem conseqüências, como comédia!
Em 1990, Christian Slater protagonizou Um som diferente, que só foi lançado em vídeo no Brasil. O filme fala de um adolescente tímido na escola, mas que comanda uma rádio pirata diretamente de sua casa. Em desabafos verborrágicos e niilistas, conquista a moçada local que se reúne para escutá-lo. A coisa perde rumo e um dos fãs suicida-se, inspirado na idéia de Slater que viver talvez não valha a pena.
Jackass não chega a pregar isto, mas os riscos corridos pela turma são tão absurdos que não é impossível que mais algum deles morra em uma de suas aventuras. O primeiro a se dar mal foi na tentativa de surfar com um carrinho de supermercado. Morreu. Talvez por isso a abertura do filme seja a turma toda surfando em um mega carrinho de supermercado. Nota: durante os créditos iniciais um a um vai caindo (sempre de forma espetacular) e se estraçalhando sobre o solo. Nos créditos finais, eles velhinhos também se detonam! Belo jeito de passar a existência...
Jackass prova como a vida espiritual tem vencido a material. Se o corpo não importa tanto, só pode ser por um desapego à carne.
Jackass sai em DVD completíssimo no Brasil, assim como nos Estados Unidos. Som 5.1, widescreen anamórfico, um sem fim de extras. Compre antes que acabe ou... seja proibido.