Filmes

Entrevista

Festival de Berlim | Mito do cinema político, Fernando E. Solanas abre debate sobre a crise da América Latina

Com documentário sobre a corrupção na produção agrícola de seu país em exibição no festival, o diretor argentina fala sobre o papel político do do cinema

19.02.2018, às 11H28.
Atualizada em 20.02.2018, ÀS 12H11

Antes de fazer uma análise crítica sobre o vício do cinema argentino em apostar em filmes sobre ditadura, em um encontro no Festival de Berlim, o mítico diretor e politico Fernando E. Solanas (de Sul e A Viagem) interpela o Omelete com uma pergunta sobre o governo de Marcelo Crivella na Prefeitura do Rio de Janeiro: "É verdade essa história absurda de que os militares estão fazendo uma intervenção armada nas ruas cariocas?".

Reprodução

A certeza de que a segurança pública da Cidade Maravilhosa possa estar nas mãos de homens fardados assusta o veterano cineasta, nascido em Buenos Aires há 82 anos. Ele integra o menu de 400 filmes da 68ª Berlinale com seu novo documentário: Viaje a Los Pueblos Fumigados, sobre o impacto de medidas políticas agrícolas na vida de quem ganha a vida na colheitas da soja. Neste papo, ele abre um debate sobre corrupção e clichês audiovisuais, relembrando seu mais famoso trabalho, A Hora dos Fornos (1968), que completa 50 anos.

Viaje a Los Pueblos Fumigados defende a tese de que a agricultura e a ciência química se compactuaram em um jogo de interesses políticos no qual a primeira vítima são os donos de pequenas hortas. Mas de que maneira a política agrícola mudou?
Segundo as estatísticas do meu país, há 1,5 milhão de pessoas desnutridas em solo argentino. Por ano, produzimos alimento para alimentar 400 milhões de pessoas, mas, atualmente, nos mal somamos 40 milhões de consumidores. O que é feito com a comida excedente. Produzimos soja para alimentar os porcos criados em fazendas alemãs, escandinavas, chinesas... e nosso povo de classes mais pobres passam fome. Os donos de pequenas hortas hoje têm que alugar suas terras pra sobreviver.

E quem ganha com isso?
Quem sempre ganhou: os bancos. Eles são os profissionais do cinismo. Graças à ação bancária, o neoliberalismo virou a cavalaria armada do capitalismo.

Ao fim da projeção de Viaje a Los Pueblos Fumigados, a crítica europeia foi unânime ao elogiar a força plástica da montagen de seu novo filme. De onde vem a força poética de seu cinema?
Da certeza de que a única defesa possível que temos contra o capitalismo é a produção e a veiculação de imagens, pois esta é a única forma de driblar a barbárie. O Iraque, por exemplo, entrou pra História como sendo uma terra bárbara porque não teve o direito de se expressar a partir de imagens próprias. Todas as imagens do Iraque conhecidas no Ocidente desde os anos 1990 foram feitas sob uma lógica dos Estados Unidos. Eu não sobrevivo de fazer cinema. Há anos, eu trabalho na Política. Se vejo um filme por semana é muito. Mas eu filmo porque preciso de provas do que se passa no Real. Só o documentário pode me dar isso. Mas a linguagem documental não se limita a informar. Ela só se sustenta como cinema se tiver algum aporte poético na sua forma de encadear imagens. A minha poética é a busca pelas zonas de trevas que se revelam na periferia de cada imagem que registro.

E por que parou de investir na ficção, foco central do cinema argentino hoje?
Por que não existem produtores dispostos a encarar o cinema de guerrilha que eu faço. O produtor das minhas primeiras ficções morreu. Eu produzi a última. Fiz A Nuvem no fim dos anos 1990 com muita dificuldade e saí do processo com um infarto e muitas brigas. Eu sei que existe ainda um documentário de cunho social no meu país. Mas existem hoje na Argentina umas cem escolas de cinema. Não tem sala de exibição lá pra dar conta dos filmes desse povo todo. Lucrecia Martel fez um filme há pouco tempo, que é belíssimo (Zama), mas ela luta contra uma série de dificuldades. Não ando por dentro do que se filma na ficção argentina atual, mas sei que se fala muito da nossa ditadura. Claro... Ficou fácil agora, pois a ditadura virou passado. Mas vê se alguém aí está fazendo filmes sobre os abusos da atual reforma econômica e a abertura de importações. Os produtos chineses estão quebrando nosso mercado e não há longas de ficção sobre isso.

Há 50 anos, o senhor dirigiu um dos maiores marcos políticos do cinema latino: A Hora dos Fornos. O que aquela edição de imagens e vinhetas, revolucionária à sua época, representa hoje?
Não se pode tirar um filme de seu contexto histórico. A Hora dos Fornos é um filme furioso porque foi feito numa época em que a Argentina somava 1.500 presos políticos. Era 1968. Ditaduras estavam pelo continente todo. A gente viajava uma hora de estrada de chão até chegar a um lugar clandestino aos olhos da Justiça onde o filme pudesse ser exibido e debatido. Hoje, um jovem argentino pode fazer a denúncia mais violenta que quiser sem correr o risco de ser preso por isso. A única censura que ele vai enfrentar é a dificuldade de levantar dinheiro para filmar. O veto está aí. Se você não compactua com as grandes companhias de cinema, não vai levantar seu projeto. Ou não terá como exibi-lo. A menos que faça como eu, que filmo com uma equipe de quatro pessoas, do jeito que dá. As equipes hoje são pautadas só pela diária de trabalho e pela hora extra, não mais pela consciência estética.

Na sua estreia no cinema, nos anos 1960, como era o engajamento?
Quando meus filmes começaram a circular por grandes festivais, eu fui convidado para ver Fellini filmar, na Itália, e pude ver um set de Ingmar Bergman também. Com eles, não se falava em bater ponto, em diária. As pessoas se envolviam no desejo de contar uma historia... todas as pessoas daquela equipe. Fellini gastava um dia todo só com ensaio e filmava no outro. Havia paixão. Arte não cabe num relógio de ponto.

PADILHA NA BERLINALE - Chegou a hora de 7 Dias em Entebbe fazer barulho na Berlinale: dez anos depois de ter conquistado o Urso de Ouro com Tropa de Elite, José Padilha vem defender seu novo longa-metragem, centrado na recriação do sequestro de um voo tripulado. O rapto foi feito por terroristas alemães (vividos no filme por Daniel Brühl e por uma inspirada e irreconhecível Rosamund Pike) simpatizantes à luta em prol dos palestinos contra as ações do governo de Israel. A sessão do longa pra imprensa terminou com muitos narizes torcidos acerca da narrativa do diretor carioca, mais próxima da estética (e da moral) dos thrillers políticos de Costa-Gavras dos anos 1970 (A Confissão; Estado de Sítio) do que do cinema de ação de hoje. Numa coletiva, no fim desta tarde, o realizador de Narcos, prestes a estrear a série O Mecanismo, vai defender suas escolhas formais. 

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