Já está marcada a primeira projeção internacional do drama carioca Unicórnio, que traz a mais elogiada atuação de Patrícia Pillar desde a novela A Favorita (2008): será no próximo dia 19, às 18h, na seção Generation do Festival de Berlim (15 a 25 de fevereiro), na capital da Alemanha. Com direção de Eduardo Nunes (Sudoeste), esta reflexão em tons metafísicos sobre desejos represados e técnicas para se perder o juízo é dividida entre dois tempos narrativos. Um deles se passa em um hospital manicomial (onde um pai conversa com sua filha) e o outro transcorre em um bosque, onde um estranho vai mexer com a libido de uma mulher solitária (papel de Pillar). Baseado na prosa da escritora paulista Hilda Hilst (1930-2004), o longa-metragem fez sua estreia mundial no Festival do Rio, onde arrebatou elogios para a fotografia de Mauro Pinheiro Jr. Na entrevista a seguir, Nunes explica o olhar poético que guiou as filmagens.
Omelete: De que maneira a poética na prosa de Hilda Hilst traduz a questão da solidão e do desejo represado que rege a narrativa de Unicórnio?
Eduardo Nunes: O conto O Unicórnio é a primeira ficção da Hilda. A sua obra - até então - era toda voltada para a poesia. E claro que essa poesia acaba invadindo toda prosa que a Hilda criou durante a sua vida. É um texto que, mesmo quando em forma de prosa, não está baseado numa ação física, mas numa série de sensações. Eu não acredito que seja possível adaptar a obra desta autora na forma clássica como entendemos uma "adaptação cinematográfica"; acredito que seja possível adaptar apenas o que o texto nos provoca. A matéria-prima da Hilda Hilst é de uma natureza muito delicada. E talvez a única forma de fazer esta transposição é estar imbuído destas sensações, para depois buscar nos elementos do cinema, a composição de um filme com este sentimento.
Omelete: E como a solidão se traduz na narrativa?
Eduardo Nunes: Se entendermos o filme como uma narrativa conduzida pela personagem Maria, a solidão e o desejo represado não estariam apenas em momentos da história, seriam inerentes a narrativa: a história é contada sob os sentimentos de solidão e desejo. É algo que sentimos nas palavras da Hilda e precisa encontrar um equivalente em som e imagem, através dos elementos que compõe uma gramática cinematográfica. Por isso, a experiência sensorial e o tempo narrativo de Unicórnio são tão importantes; o entendimento deste filme passa pelas sensações que ele provoca. Por uma experiência imersiva.
Omelete: Como você articulou a porção animada do filme, uma vez que há um trecho da narrativa em forma de desenho animado, e de que maneira ela traduz a dimensão fabular do filme?
Eduardo Nunes: Desde a primeira versão do roteiro havia uma sequência de animação. E mais ainda: uma animação do Marão. Sempre fui fã dele, e fiquei feliz em ter o trabalho dele como parte do filme. Acho que, um dos entendimentos possíveis, é que Unicórnio é um filme que trata de narrativas. Maria conta uma história para o pai: a mãe a a filha aguardam a volta do pai. Ao convencionar de que trata-se de uma “história contada” contada por Maria, aceitamos tudo que a compõe: as cores, o Unicórnio, a árvore com frutos venenosos… Da mesma forma, a história do ratinho é contada pelo pai, e o “tom da história” é dado pelo pai: o traço vacilante do lápis, o preto e branco, as cores que só existem no mundo desejado, a desesperança… Esta cena, mesmo sendo de uma natureza diferente do restante do filme, representa a voz fabular que o pai ainda possui.
Omelete: O quanto a fotografia do Mauro Pinheiro aqui conversa com a de Sudoeste, seu filme anterior? Qual é a proximidade formal que você enxerga entre eles?
Eduardo Nunes: O Mauro Pinheiro é um grande parceiro em mais de 20 anos; ele fotografou todos os filmes de ficção que realizei. Na verdade, trabalho praticamente com a mesma equipe todos estes anos. A proposta da janela 1:3,66 e do preto e branco em Sudoeste partiu dele. Na época, entendemos que, naquele filme, as locações eram muito horizontais e, além disso, era necessário um outro olhar (dado pela janela e pelo p&b) que desse, ao cotidiano banal do filme, a vontade da descoberta, do estar vendo tudo pela primeira vez, assim como era com a personagem de Clarice que vivia num único dia. Em Unicórnio, a janela 1:3,66 surgia como uma tentação a ser evitada.
Omelete: Por quê?
Eduardo Nunes: Acreditamos, num primeiro momento, que aquilo pertencia ao outro filme. Mas, aos poucos, fomos encontrando muitas semelhanças narrativas: uma jovem personagem feminina que passa por um processo de descoberta, a sexualidade reprimida, o conhecimento através da Natureza… E pareceu muito natural que estes dois universos (de cada um dos filmes) deveriam dialogar. Ao mesmo tempo, são universos que possuem qualidades próximas, mas distintas. Daí surgiu o uso da cor em Unicórnio. Queríamos uma cor que remetesse aos antigos filmes coloridos em technicolor. A novidade de descobrir um mundo narrado pelas cores, onde a Natureza transbordasse. Começamos com esta proposta, e fomos realizando uma série de experiências (durante mais de uma semana na finalizadora) até chegar ao resultado que gostaríamos.
Além de Unicórnio, há mais uma leva de títulos nacionais e de filmes estrangeiros pilotados por brasileiros em outras mostras da Berlinale.68. José Padilha exibirá seu aguardado thriller 7 Dias em Entebbe na Berlinale Special. No Panorama, entraram: Aeroporto Central, de Karim Aïnouz; Bixa Travesti, de Claudia Priscila e Kiko Goifman; Ex-Pajé, de Luiz Bolognesi; Tinta Bruta, de Marcio Reolon e Filipe Matzembache; e O Processo, filme de Maria Augusta Ramos sobre o Impeachment de Dilma Rousseff. No Fórum, escalaram Eu sou o Rio, de Gabraz Sanna e Anne Santos. Na Berlinale Shorts, competem os curtas Alma Bandida, de Marco Antônio Pereira; Terremoto Santo, de Bárbara Wagner & Benjamin de Burca; e a coprodução com Portugal Russa, de Ricardo Alves Jr. e João Salaviza. Haverá ainda projeção de projetos da TV Globo no mercado internacional de séries, com destaque para Vade Retro, com Tony Ramos.