Filmes

Entrevista

Zama | “O Brasil tem o poder de conciliar o inconciliável”, diz o português Rui Poças

Um dos mais disputados fotógrafos da Europa na atualidade sobre sua experiência em filmes nacionais

27.03.2018, às 11H48.
Atualizada em 30.03.2018, ÀS 16H01

Quem passa em revista os créditos de alguns dos filmes portugueses mais importantes (e mais premiados) dos últimos dez anos, como O Ornitólogo (2016) e Tabu (2012), encontrará um ponto (elegante) em comum na engenharia visual deles: a fotografia de Rui Poças. Nesta quinta-feira (29), um dos trabalhos mais elogiados dele entra em cartaz no Brasil: Zama, o novo longa-metragem da argentina Lucrecia Martel.

Divulgação

A trama é ambientada na Argentina do século XVIII, em que um funcionário da Coroa Espanhola, o inspetor Zama (Daniel Giménez Cacho), caça um criminoso em meio a um esquema de corrupção. Esta autoralíssima versão para as telas do cultuado romance homônimo, publicado em 1956 por Antonio Di Bendetto, impressiona pela requintada recriação da América do Sul daquele período. Parte do mérito vai para a conta de Rui, indicado ao Prêmio Platino (espécie de Oscar latino) de Melhor Fotografia pelo longa.

Fora Zama, ele fotografou Severina, segundo exercício cinematográfico do diretor teatral Felipe Hirsch (Insolação), previsto para estrear no dia 12 de abril. Hirsch narra a tensão afetiva entre um livreiro e uma jovem que surrupia seus romances. Há também um dedo de Rui em Ferrugem, drama de Aly Muritiba que ganhou elogios em Sundance, em janeiro. E no ultimo Festival do Rio, ele ganhou o Troféu Redentor de Melhor Fotografia por As Boas Maneiras, o filme de lobisomem de Juliana Rojas e Marco Dutra. Sem contar que o currículo dele inclui o festejado Deserto (2016), de Gui Weber. Na entrevista a seguir, Rui explica sua maneira de domar a luz (ou quase) nos sets de Portugal e do Brasil.

Omelete: Existe um traço autoral consciente na luz que você cria ou ela é sempre determinada pelo olhar de seus diretores? Qual é a medida da sua marca pessoal ao criar uma fotografia?
Rui Poças: Deixar uma marca autoral nos filmes em que colaboro não é uma preocupação minha. Na verdade, penso que eu próprio não a saberia identificar, se me pedissem. Eu considero que a minha contribuição num filme consiste em, para além de participar na criação da sua identidade visual exclusiva e original, a de encontrar a forma mais conveniente para contar uma história com os materiais e ferramentas que o cinema fornece. Talvez a particularidade mais fascinante da minha profissão seja a de ela proporcionar múltiplos encontros com diversos realizadores e com cada qual deles, criar em conjunto, a imagem dos seus filmes.

Qual é o limite de liberdade que se encontra no set de uma Lucrecia Martel, por exemplo?
Me é dificil enquadrar uma resposta nesses termos. Vejo o cinema como um território de colaboração e contribuição colectiva. O inquestionavel estatuto do realizador-autor, no sistema de produção conhecido como Cinema de Autor, não pressupõe um regime de restrição de liberdade. Cada filme cria para si uma dinamica particular, definida pelas condições de trabalho e pelos objectivos a que se propõe. Daí que seja difícil inclusive definir com exactidão uma metodologia universal no cinema. Felizmente, fazer um filme não é conduzir um campo de batalha, embora muitas vezes seja tentadora a comparação, sobretudo no modelo de produção industrial. A minha experiência com Lucrecia Martel permitiu-me acompanhar a criação de conceitos que ajudaram a transposição da novela homônima de Antonio di Benedetto nos pontos que lhe interessavam. Num determinado momento do processo, procuramos pensar em como a imagem e, particularmente, a luz poderiam ajudar a sugerir a sensação de um tempo distendido, o desespero da espera ou até a estranheza perante uma realidade desconhecida. Repensar a questão da representação de uma época passada foi tambem um desafio interessante. Nisso, por exemplo, agimos com uma liberdade pouco comum, libertando-nos das conveções habituais do cinema.

Qual é a luz que se produz do seu encontro com Hirsch? Como se ilumina uma história de amor mediada por livros?
O encontro com Felipe Hirsch foi a de um bibliofilo (ele) com uma alegre vitima de tsundoku (eu). Tremendo encontro! Durante toda a preparação e rodagem se não estávamos a falar do filme, estávamos a falar de livros e eventualmente de musica, outra paixão de Felipe. A luz acho que a devo sobretudo a esse país que não conhecia e a essa cidade que se me entranhou como uma melancolia subcutanea e que encontrou acolhimento no lado monocromatico do meu coração português (característica genética que Felipe Hirsch tambem tem). Fiquei deveras abismado com a familiaridade fantasmática que Montevideo me fez sentir, tão propícia ao filme. Para além da vertigem amorosa que o protagonista atravessa, Severina é um filme sobre os labirintos da identidade, a fragmentação e multiplicação do eu, a sinceridade e o fingimento, a criação literária e os delirios existenciais. Temas pessoanos, diria.

Que lições sobre brasilidade filmes como Severina, de Felipe Hirsch; Ferrugem, de Aly Muritiba; Deserto, de Gui Weber; e As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, oferecem a você?
O Brasil arrebata-me sempre. O potencial de criação neste seu país é gigantesco. É um lugar onde se criam constantemente formas de cultura originais, graças à confluência de influências diversas. Verifico a existência de uma criação intensa e non-stop que é uma realidade não só com vários séculos, mas sempre e cada vez mais activa, ao contrário do movimento esgotado da Europa, tristemente repetitivo e em autocitação permanente. O Brasil tem tambem características muito particulares, como a facilidade de aceitar e fazer conviver por exemplo o pensamento mágico com o pensamento racional ou cientifico, como em nenhum outro lugar do mundo. É simplesmente maravilhoso e gerador de coisas surpreendentes. Sinto-me sempre muito bem acolhido por cá e entusiasmado em abraçar esse gesto de mestiçagem cultural e liberdade criativa. Acho que se tiver de apontar uma coisa que se destaque como algo por que sempre me deixo contaminar alegremente de cada vez que venho ao Brasil é essa facilidade no romper de limitações. Parece-me existir no Brasil o poder de conciliar o inconciliável. Parece até um superpoder.

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