Filmes

Entrevista

"Estamos num mundo onde a questão dos refugiados é urgente", diz Michael Haneke sobre Happy End

Filme cotado ao Oscar chegou aos cinemas americanos

27.12.2017, às 16H48.
Atualizada em 28.12.2017, ÀS 05H04

Consagrado por filmes avessos à esperança e a humanismos, onde a crueldade é uma bússola, Michael Haneke não parece uma opção coerente com período das festas natalinas, porém seus distribuidores nos EUA não deram bola para o fel que marca a obra do oscarizado cineasta austríaco e lançaram seu último longa-metragem, Happy End, no último fim de semana. O motivo: tentar creditar esta produção de US$ 13 milhões para o Oscar de melhor roteiro. A aposta, arriscada, foi compensada com resenhas elogiosas na imprensa americana e uma das bilheterias mais sólidas entre os filmes europeus no pequeno circuito de arte dos Estados Unidos. Na França, onde estreou em outubro, o longa vendeu 50 mil ingressos já na largada, com um número pequeno de cópias.

Ganhador da Palma de Ouro por A Fita Branca (2009) e Amor (2012), pelo qual recebeu o Oscar de melhor filme estrangeiro, Haneke faz a partir de Happy End uma cartografia das patologias europeias, com foco numa aristocrática família francesa, os Laurent. O veterano ator Jean-Louis Trintignant (de cults como Z) é Georges, patriarca de um clã que tem Isabelle Huppert e Mathieu Kassovitz entre seus parentes.

Com uma direção cirúrgica, pautada por um clima de tensão crescente, Haneke cria em Happy End a crônica da atomização da burguesia no Velho Mundo, a partir da erosão afetiva e financeira dos Laurent, entre tragédias e processos judiciais. Já no início, o cineasta monta uma sequência sombria: uma menina filma num i-Phone um jogo cruel com um hamster alimentado com comprimidos de dormir. É uma metáfora para a opressão dos pobres. Em Cannes, onde o filme concorreu à Palma de Ouro, Haneke falou ao Omelete sobre a situação de seu continente.

Omelete: O que esse elemento do celular, como um espelho dos horrores, representa no retrato que o senhor pinta do Velho Mundo?

Haneke:  Estamos numa mudança radical, não apenas de valores e de representação, mas de tecnologias, com distâncias sendo atomizadas. Não é mais o mundo em que eu cresci, mas não espero que as coisas fiquem estanques. O mundo precisa mudar. Mas é a mídia que melhor traduziu essas mudanças, em distintos suportes, que geram novos hábitos. As redes sociais são um advento do que a tecnologia pode fazer. Mas não me cabe julgá-las, e sim observá-las. Por isso eu fiz um filme sobre mutações, até as sociais, pois estamos num mundo onde a questão dos refugiados é urgente.

Omelete: Temos em Happy End uma família de escrúpulos duvidosos, como costumam ser os personagens de seus filmes. De onde vem essa sua descrença na Humanidade?

Haneke:  Não sei de que descrença você fala. Sei, sim, que existe uma mirada ingênua em relação ao que se passa em nossa volta. Eu vivo a vida com olhos abertos. Estou atento ao que está além das aparências. Talvez isso me faça perceber questões graves do nosso tempo, doenças. Famílias como o clã Laurent estão por aí ao nosso lado.

Omelete: O suspense é uma marca em sua obra. Mas é um suspense cirúrgico, sem excessos. Como ele se constrói?

Haneke:  De novo, caímos na questão da observação. O suspense vem da atenção. Temos a sensação de estar atento ao risco, mas este vem de onde não percebemos. E isso, numa narrativa, é ditado pelo clima. A provocação não depende de intrigas, de viradas, e sim da percepção do que nos cerca.

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