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Faces

Clássico de John Cassavetes mostra a revolução social dos divórcios

26.04.2007, às 15H00.
Atualizada em 07.11.2016, ÀS 06H06

Falar da aula que o grande John Cassavetes (do cinema independente, dos tipos desesperados e amores questionados, da "volta" como possibilidade a ser sempre considerada) dá em Faces sobre como se tratar a decupagem com respeito, é mais ou menos chover no molhado.

Dizer que ele usa a possibilidade da montagem dessa película como se fosse um exemplo do quanto um filme pode ser beneficiado pelo uso da técnica, resvala num discurso didático que acaba por parecer normal e pequeno demais ante o resultado obtido, que tem muito de sua força potencializada justamente pelo erro, pelo uso não convencional dos cortes, por alguns planos tremendamente estranhos. Há também um apuro incontestável na utilização de uma granulação bastante pronunciada em seu preto e branco impecável e de matiz apropriada à revelação de nuances psicológicas.

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Lógico que não estou tentando desmerecer os elogios que o filme recebe já "secularmente" por esse apuro técnico e de certa forma revolucionário. Só que a observação da obra por esse viés único seria quase um crime cultural; uma diminuição do caráter abrangente que Cassavetes sempre exercitou como observador atento e perspicaz de sua época. Vale lembrar que o diretor norte-americano de origem grega talvez tenha como maior mérito - melhor dizendo: um dos grandes méritos - uma qualidade, provavelmente inata, de ser um grande analista do movimento revolucionário-comportamental em uma época bastante complexa e incendiária. Ele coloca em diversas de suas obras grandes momentos de transformação que ocorriam simultaneamente à sua realização, num feito que normalmente só consegue impacto e poder de conclusão razoável quando trabalhado após um certo distanciamento temporal dos fatos.

Quando Faces inicia, percebemos automaticamente que estamos dentro de uma obra do diretor. O ritmo meio que alucinado de atuação, com as pessoas filmadas de muito perto - por vezes há a impressão de que a câmera chega até a roçar os atores - e as nuances de comportamento um tanto quanto que exacerbadas de cada protagonista que surge na tela, firmam a assinatura de Cassavetes. Essa proximidade inventada por ele se faz muito mais importante quando fica nítido que ele trata de personagens da vida comum, e que busca jogar à análise ou compreensão do público o momento histórico, onde homens e - principalmente - mulheres passaram a pôr em prática os ganhos obtidos da "revolução de costumes e moral" que ocorria paralelamente. Então: o que se vê em Faces são seres que não sabem tratar direito dessa novidade que se faz urgente e importante. São seres angustiados e de certa maneira desesperados em não deixar escapar o trem da História que passa à porta. Daí ao erro, um passo. Daí às extremidades - boas e más -, mais outro passo.

E o filme experimental - por excelência e por proposta eterna do realizador - também passa a tentar entender a "experimentação humana" atrás da qual partem seus personagens. Um dos resultados mais evidentes desse momento comportamental foi o aumento desmesurado do número de divórcios nos Estados Unidos. Vendo o filme fica nítida a razão pela qual tal fenômeno ganhou proporções tão significativas, pois o que se apresentava era a possibilidade do outro lado disponível, sem o medo da crispação social do entorno - sem a acusação moralista -; da outra face do sexo mais "disponível" e disposta, sem o medo das "instituições" acusadoras. O que temos, resumidamente, é um casal que tenta entender até que ponto essas possibilidades são viáveis. Richard Forst (John Marley) descobre esse seu alvo possível a ser alcançado na figura forte, consciente, provocadora e arrojada de Jeannie Rapp (Geena Rowlands, mais uma vez precisa em sua composição; e maravilhosa). Vai atrás desse canto de sereia e enfrenta todos os estereótipos de uma sociedade competitiva por excelência para serem enfrentados (os comportamentos machistas que tentam defender a sua imposição sobre a fêmea almejada estão presentes o tempo todo durante esse processo de busca, e são discriminados pelo diretor como se fossem uma espécie, mais de patuacada do que algo a ser levado a sério)

Já a outra face do casal, representada pela bela e emocionante Maria Forst (Lynn Carlin) também acaba por aceitar a procura dessas novas possibilidades, mas muito mais ao jeito feminino. As descobertas e os ganhos modificaram muito mais fortemente a imagem e o comportamento da mulher após esse período, mas a maneira pela qual Maria acaba por ingressar nessa tentativa é um bom resumo da maneira através da qual a maioria das mulheres (principalmente as mais maduras) descobriu, ou tentou, esse processo. Aliás, quando ela e suas companheiras aparecem na "boate", vendo os mais jovens dançando de modo ousado e revelador, o filme ganha uma aura de verdade e emoção incrível. Suas figuras, seus modos de se imaginarem ousando - cada uma ao seu jeito -, a maneira como o jovem é levado à casa de Maria, todo esse segmento do filme acaba por botar no chinelo o outro "lado" envolvido tamanha a sintonia que o diretor conseguiu entre as atrizes e as câmeras.

E está delineada a grande história que Faces quer contar. Que é tão importante por sua temática, que pareceria ridículo permitir análises somente sobre a excelência técnica de Cassavetes. O mais bacana é que tudo contribui demais para um trabalho orgânico. Há a seqüência em que Maria age de maneira tonta e emocionante, todo o processo do jovem na tentativa de desfazer uma bobagem enorme, e que tem seu valor realmente realçado pela câmeras que gruda nos personagens e transmite para a tela seus suores e desesperos. Há a quebra dessa emoção com uma cena estranha, no telhado - pontual para definir o jeito de entender cinema do diretor e seu modo de desmistificar os exageros numa trama. E há o grande momento final, na escada, com isqueiro e tudo, cortes e voltas, altos e baixos, mais a esperança e fé na "normalidade" após a tempestade procurada, onde se pode encontrar - aí sim sem jeito de deixar de citar - uma aula da tal da decupagem. Há Faces, afinal.

Cid Nader é editor do site cinequanon.art.br

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