Enquanto James Gunn e Taika Waititi recebem os louros por conceber ou reformular a veia cômica dos filmes da Marvel, Peyton Reed entrou pelas portas dos fundos, substituindo o favorito dos fãs Edgar Wright no primeiro Homem-Formiga. O que Reed realiza em Homem-Formiga e a Vespa tem potencial para fazer-lhe justiça. A continuação adere a regras do gênero screwball com propriedade e o resultado talvez seja a melhor comédia do MCU.
O screwball remonta às comédias de William Shakespeare e pode ser grossamente resumido como um encadeamento de situações amorosas e cômicas de viradas rápidas (a "bola curva" do beisebol o designa justamente pela mudança de trajetória que nos pega de surpresa). Em Hollywood esse subgênero se tornou sinônimo de comédia romântica muito por conta dos filmes de LeoMcCarey e Howard Hawks nos anos 1930, e Peyton Reed se filia a essa tradição aqui, da mesma forma que seu Abaixo o Amor revisitava a comédia sessentista de guerra dos sexos.
A diferença é que Homem-Formiga e a Vespa, como óbvio produto-tampão entre Vingadores 3 e 4, e envolvido nas expectativas que cercam o MCU, nunca poderia se propor a um exercício de mimetização e cinefilia tão frontal quanto o de Abaixo o Amor. Então o que Reed faz - na melhor tradição dos autores que sequestram gêneros em causa própria - é organizar a continuação como screwball comedy sem se recusar a fazer o beabá do filme de ação com toques scifi. Mesmo que Evangeline Lilly não seja nenhuma Rosalind Russell, o que temos aqui é uma comédia de fundo romântico bem espirituosa.
A parte do beabá diz respeito, basicamente, a toda a explicação de conceitos que envolvem as pesquisas de Hank Pym. A entrega da exposição é banal ("vocês colocam a palavra quântico em tudo que falam, é isso?", pergunta Scott) e as soluções de trama são frequentemente primárias (viradas fáceis envolvendo rastreadores, apresentações de novos personagens, criação oportuna de superpoderes). Isso não desabona o filme, porém, porque sempre fica claro que Reed passa pelas obrigatoriedades narrativas só pelo que elas têm de funcional (é boa a cena em que Woo explica as consequências da Guerra Civil para uma... criança). Inclusive ainda bem que Scott é uma toupeira porque graças às suas válvulas de escape cômicas as cenas de exposição sempre terminam encurtadas no final.
O foco do diretor está na forma como as viradas se beneficiam com o humor. Enquanto a entrega da exposição é trivial, a entrega das piadas - particularmente o estabelecimento e a sustentação enganosamente despreocupada de uma piada por muitos minutos até a punchline - é muito bem feita. As cenas de ação operam nessa linha: quando Scott está gigante, por exemplo, ele resolve facilmente situações com os vilões que ficaram menores, e até os efeitos sonoros (como o peteleco em uma metralhadora) acompanham essa lógica de humor. Ademais, se o senso de escala já era um dos pontos positivos do filme anterior, isso melhora na continuação: o mundo diminuto tem suas regras, assim como o gigantismo.
O que torna Homem-Formiga e a Vespa empático é que o humor está a serviço do filme e não é um fim em si mesmo. Reed trata a comédia de uma forma mais sofisticada que James Gunn - não é o riso autoconsciente apenas, mas o riso em função de uma dramaturgia. Nesse sentido ele se aproxima mais de Joss Whedon, roteirista que também pensa situações cômicas como um atalho para facilitar a conexão emocional com o espectador.
Especificamente, a dinâmica de Homem-Formiga e Vespa segue duas regras de ouro da comédia romântica tipo screwball para tornar as relações mais interessantes: a mulher está socialmente acima do homem (Hope entende de ciência e Scott não) e também está adiante nas viradas (Hope teria evitado que Scott fosse preso em Guerra Civil, diz ela, e nós acreditamos). Até a situação consagrada da troca de papel entre homem e mulher, típica desse subgênero, é usada por Reed, numa cena impagável de "possessão" que se aproveita muito bem da veia feminina de Paul Rudd. O ator, aliás, se encontrou definitivamente no personagem e está numa chave performática excepcional em Homem-Formiga e a Vespa, comparável ao Robert Downey Jr. de Homem de Ferro 3 em termos de timing, presença e gestuais cômicos.
No geral, a estrutura do roteiro é bem eficaz para manter o ritmo e um mínimo suspense, particularmente no terceiro ato (um dos melhores terceiros atos nestes dez anos de Marvel Studios), com uma mistura de Curtindo a Vida Adoidado e Querida, Encolhi as Crianças numa dinâmica de ação cômica que lembra os desenhos dos Looney Tunes, com suas viradas de gags visuais inesperadas.
A trilha do compositor Christoph Beck, pontuada por temas inusitados, ajuda a criar essa sensação de que o imprevisível norteia Homem-Formiga e a Vespa. Essa sensação é vital para a boa experiência do filme - que afinal parte de um plot manjado, já bem coberto nos trailers, e cujo clímax é só uma grande perseguição. O que temos aqui, em resumo, é um filme teoricamente previsível que surpreende porque incorpora muito bem a dinâmica do imprevisível, marca das comédias screwball.
Ano: 2018
País: EUA
Classificação: 12 anos
Elenco: Paul Rudd, Evangeline Lilly, Michael Douglas, Michael Peña