Afinal, como funciona a Lei Rouanet?

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Afinal, como funciona a Lei Rouanet?

Diferentemente do que se imagina, os recursos do principal mecanismo de incentivo à cultura não vem diretamente dos cofres públicos

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5 min de leitura
11.04.2023, às 12H14.
Atualizada em 11.04.2023, ÀS 14H10

A Lei Rouanet, como é conhecida a Lei de Incentivo à Cultura, nunca esteve tanto na boca das pessoas: tão logo qualquer manchete a respeito do mecanismo sai nos jornais, uma avalanche de opiniões toma conta das redes sociais. Este poderia ser um ótimo indício de uma sociedade interessada e inteirada no debate sobre a cultura, mas, infelizmente, esta “popularidade” é mais um reflexo da falta de compreensão coletiva sobre como ela funciona. Tome como exemplo o anúncio do desbloqueio de R$ 1 bilhão via Rouanet, feito em janeiro pela ministra Margareth Menezes. Em vez de um debate propriamente dito, o que se observou foram conversas atrelando a medida à corrupção e julgando projetos contemplados, como o espetáculo musical da atriz Cláudia Raia, como criminosos — discurso este ecoado por figuras de autoridade, como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que comparou a liberação dos recursos aprovados no ano anterior a uma “festa”.

No entanto, esta percepção sobre a Lei Rouanet é, no mínimo, equivocada, e não se trata de uma questão político-partidária. Isso porque este discurso pressupõe que o mecanismo funcione como um investimento direto, ou seja, que os recursos aprovados para cada projeto venham diretamente dos cofres públicos — e, em um país tão habituado a escândalos e ao uso de dinheiro público para fins eleitoreiros, isso pode, sim, gerar desconfiança. Mas, na realidade, este não é o caso. A Lei Rouanet é, por definição, um investimento indireto.

O que isso significa? Ao ser aprovado pela Rouanet, o artista basicamente recebe um ok para ir atrás da captação de recursos — em outras palavras, para bater de porta em porta para apresentar o projeto para possíveis interessados. Se a empresa entender que ele é alinhado à marca e aos seus valores, o dinheiro que financia o projeto é deduzido do imposto de renda dela — um valor limite de até 4% do IRPF — e, em contrapartida, seu logo é estampado nos banners e créditos.

"É o caso do Itaú com a Bienal do Livro, da Shell com o Shell Open Air", exemplificou Marina Rodrigues, produtora-executiva com foco em políticas públicas para o audiovisual e apresentadora do podcast Simplificando Cinema. "É uma empresa enorme, que talvez não seja tão ligada assim com cultura, mas que com o Shell Open Air passou a ser uma marca reconhecida também por quem gosta de ver filmes".

Portanto, a Lei Rouanet é um mecanismo de benefício mútuo: o artista recebe o financiamento para seu projeto, enquanto a empresa tem o abatimento fiscal e a publicidade. Há, porém, ainda mais um benefício.

“Digamos que você comprou o ingresso para o Shell Open Air. Aquele valor vai retornar para o governo na forma de imposto, e você vai ficar com o impacto cultural. Lá dentro, se você quiser consumir, também vai voltar para os cofres públicos, porque os serviços têm impostos incluídos”, explicou Rodrigues. “E não volta para a Lei Rouanet, mas para o estado e para a federação, e consequentemente vai ser redistribuído para outras áreas com o Orçamento da União. Então [o mecanismo] gera um impacto financeiro maior. Você movimenta toda a cadeia econômica com a aprovação de um projeto cultural.

 

O PASSO A PASSO

Ainda assim, ficam algumas questões. Como o projeto da Cláudia Raia e de tantos outros artistas conseguiram ser contemplados pela Rouanet? Quais são os critérios para a aprovação? Alguém fiscaliza como esse dinheiro é usado? Mais uma vez, Rodrigues descomplicou todo esse passo a passo.

1) Inscrição. “Todo mundo inscreve seus projetos em uma plataforma chamada SALIC, que é sustentada pelo governo. Ali você precisa cumprir todos os requisitos: precisa botar a sinopse do projeto; fazer um argumento de pelo menos uma lauda, explicando por que você quer fazer aquele projeto; quais são as possibilidades a atingir com aquele projeto; quais são as contrapartidas sociais mais democráticas; qual é o orçamento e justificar por que esse valor. Enfim, uma série de coisas que você precisa pensar no seu projeto para que ele tenha chance de ser aprovado”.

2) Avaliação. “Uma comissão analisa e vê se seu projeto é viável, se você tem a capacidade de arcar com aquilo e se pode fazer a diferença na cultura brasileira”. E, aqui, vale o parêntesis: essa comissão avaliadora é formada pelo Ministério da Cultura, incluindo representantes tanto da sociedade civil, quanto do Estado.

3) Captação. “Uma vez que você é aprovado, você ainda não está com o dinheiro na sua conta. A comissão apenas aprova o seu projeto para que você comece a fazer a captação de recursos. Então você vai até as empresas e pergunta se têm interesse de investir naquele projeto. Monta toda uma apresentação, em que explica como é que é, o orçamento, a motivação… Tudo o que já fez na SALIC, você faz para as empresas. E aí as empresas decidem se aquilo ali é bom ou não para elas”.

4) Execução. Feita a captação, é obrigatório que o projeto saia do papel em, no máximo, 12 meses — e, claro, respeitando o que foi registrado na SALIC e apresentado aos colaboradores.

5) Prestação de contas. “O beneficiado pega todas as notas fiscais, até mesmo dos funcionários que emitem pelo MEI e dos R$ 2 da água que ele comprou para a equipe no mercadinho da esquina, e coloca no sistema do próprio SALIC. Se ele respeitou o teto, deu tudo certo. Se gastou menos, o resto do dinheiro volta para o governo, que vai colocá-lo no Fundo Nacional de Cultura. Se aconteceu uma quebra do teto [aprovado pela Rouanet], ele vai precisar pagar. Isso vem em forma de multa e corre o risco de ele ficar inabilitado de captar. Então, no próximo ano, ele não pode inscrever nenhum projeto com seu nome, nem com sua empresa”.

Em resumo, a Lei Rouanet não só não dá brecha para a “mamata”, como é também um mecanismo eficiente de incentivo à cultura tanto do ponto de vista simbólico, quanto mercadológico. Ainda há espaço para melhora, é claro — para Rodrigues, por exemplo, a concentração de projetos aprovados no eixo Rio-São Paulo é uma delas. Mas, saber como ela funciona é o primeiro passo para que nós, como cidadãos, possamos debatê-la e apontar o que pode melhorar.

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