O ponto de vista subjetivo de seus protagonistas delirantes, e a maneira sem medida como subordina o olhar do espectador a esse ponto de vista, são dois elementos centrais dos filmes mais provocativos de Darren Aronofsky. Quando o cineasta diz que fez Mãe! para "voltar às suas origens de Réquiem para um Sonho e Cisne Negro" (uma declaração de quem visivelmente tem sua própria trajetória autoral em altíssima conta, porque no fundo Aronofsky nunca sai muito desse molde narrativo), ele faz referência a esses dois elementos combinados.
Ao longo de Mãe! acompanhamos o tempo inteiro a cabeça de Jennifer Lawrence - literalmente. Além de manifestar na imagem os fluxos de consciência da personagem - que está lidando com as inseguranças, as fragilidades e as pequenas e grandes violências associadas à condição de ser mulher, esposa e mãe - Aronofsky praticamente anexa sua câmera ao ombro da atriz, e da altura do seu olhar assistimos ao filme. Quando desgruda um pouco dela, frequentemente é para demarcar elipses de tempo: por exemplo, primeiro a câmera permite mostrar Lawrence com um vestido de pijama, os seios fartos e a luz da manhã passando entre suas pernas, para denotar a sensualidade de um relacionamento no estágio da paixão; quando desgruda mais adiante, é para revelar a barriga já de meses. Javier Bardem passa boa parte do filme relegado ao papel que lhe cabe, o do marido alienado, visto de canto ou de passagem.
Muita gente defende, com propriedade, que o cinema é a arte do não-visto. Toda escolha de enquadramento é um renúncia a o que deixar de fora, e essa escolha, nas mãos dos melhores cineastas, é capaz de compor com o som e com a imaginação do espectador mundos inteiros de possibilidades que ficam no chamado extracampo. Em Mãe!, porém, a proposta é a da interiorização; a casa onde o filme se passa é econômica na cenografia, há pouco a ser "descoberto". Os objetos de cena que surgem com o tempo (da joia à chave inglesa) sempre servem a um propósito de plot e menos a uma construção de mundo. O minimalismo é pensado para emular um espaço sacro e expressar a tela em branco que é a mente da personagem, e Aronofsky nem precisaria ter colocado Lawrence pintando uma parede vazia da casa para deixar isso claro. Para um filme que se inscreve no gênero do terror, é chocante a incapacidade de Mãe! de gerar suspense com o extracampo. Tudo o que se gera é o impacto cena a cena.
E cabe a Lawrence reagir, reagir, reagir. (Justiça seja feita, a atriz responde muito bem a essa posição ingrata, e não reage com os mesmos gestos expansivos, de melodrama, que ela demonstra com David O. Russell, o que seria até de se esperar.) Se tudo se acorrenta ao olhar reativo e frequentemente passivo da personagem, se a mãe do filme, apesar de todo seu sofrimento de parto, é muito mais espectadora da sua vida do que agente da ação de fato (e nesse ponto Aronofsky faz aquele que talvez seja seu filme mais niilista, ao tirar da personagem sua completa capacidade de escolha), o que sobra em Mãe!? Sobra o texto, sobram os temas, as famigeradas alegorias, tudo aquilo que evidencia a mão do autor e diz muito mais respeito a Aronofsky, o criador, do que a Lawrence, sua criatura.
Justiça seja feita, novamente, Aronofsky sempre esteve muito à vontade na posição vaidosa do criador. Suas idiossincrasias visuais alcançam em Mãe! um novo estágio, e nenhum cineasta hoje na Hollywood "de prestígio" ousa combinar e filmar o cafona e o grotesco como ele. Mas, de novo, isso diz mais respeito aos gostos do diretor, seus impulsos e suas obsessões, do que propriamente às ficções que ele tenta construir e que raramente ganham autonomia além da estilização. Que demonstração mais desavergonhada de megalomania, recriar o Éden e a jornada de Maria, voltar aos temas bíblicos que marcam sua carreira desde o começo, mas desta vez se colocar frontalmente como a figura onipotente do Criador, inquestionável nas suas escolhas.
Tem que ter o dom, e para o bem ou o mal dificilmente teremos outro filme como Mãe! tão cedo. Você percebe que um cineasta se superou quando ele faz um filme que tem toda a cara de um Lars von Trier (o niilismo nível Melancolia, a mise-en-scene sensacionalista nível Festa de Família, os cacoetes de cenografia nível Dogville) mas que nem mesmo Von Trier teria a cara de pau de fazer.
Ano: 2017
País: EUA
Classificação: 16 anos
Duração: 149 min
Direção: Darren Aronofsky
Roteiro: Darren Aronofsky
Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Michelle Pfeiffer, Ed Harris, Kristen Wiig, Domhnall Gleeson, Cristina Rosato, Patricia Summersett, Jovan Adepo, Brian Gleeson, Chris Gartin, Alain Chanoine, Xiao Sun, Marcia Jean Kurtz, Mercedes Leggett, Kimberly Lafferriere, Anana Rydvald, Hamza Haq, Gregg Bello, Stanley B. Herman, Jaa Smith-Johnson, Nobuya Shimamoto, Sabrina Campilii, Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer, Domhnall Gleeson, Brian Gleeson, Kristen Wiig, Jovan Adepo, Stephen McHattie, Cristina Rosato, Patricia Summersett, Gregg Bello, Amanda Chiu, Eric Davis, Raphael Grosz-Harvey, Emily Hampshire, Abraham Aronofsky, Luis Oliva, Stephanie Ng Wan, Ambrosio De Luca, Arthur Holden, Henry Kwok, Alexander Bisping, Koumba Ball, Robert Higden, Elizabeth Neale, Scott Humphrey, Anton Koval, Carolyn Fe, Pierre Simpson, Mylene Savoie, Gitz Crazyboy, Shaun O'Hagan, Mizinga Mwinga, Genti Bejko, Andreas Apergis, Julianne Jain, Julien Irwin Dupuy, Bronwen Mantel, Amanda Mason Warren, Mason Franklin, Laurence Leboeuf, Sarah-Jeanne Labrosse, Mercedes Leggett, Alain Chanoine, Kimberly Lafferriere, Deena Aziz, Chloë Bellande, Adam Bernett, Izabela Dąbrowska, Bineyam Girma, Hamza Haq, Oliver Koomsatira, Vitali Makarov, Danny MAlin, Serge Martineau, Fred Nguyen, Daniela Sandiford, Xiao Sun, Nathaly Thibault, Melissa Toussaint, Kimberly Laferriere