Tudo começou com Karyn Kusama. Em abril de 2016, diante dos elogios da crítica ao (realmente brilhante) suspense O Convite, a diretora foi tema de um longo perfil do Buzzfeed. O texto buscava reexaminar a trajetória dela em Hollywood, reconhecendo que Kusama teve sua visão sufocada e roubada por estúdios avessos a conceder liberdade e poder a uma autora do sexo feminino em plenos anos 2000. Enterrado ali no meio do artigo, pouco depois da história de como o Aeon Flux (2005) da diretora foi picotado pelos executivos, havia uma tentativa de repaginar o consenso sobre outro dos filmes dela: Garota Infernal.
De toda a reavaliação da obra de Kusama que o meio cinéfilo empreendeu desde então, talvez a de Garota Infernal seja a mais significativa. Pudera: o filme estrelado por Megan Fox como uma líder de torcida possuída por um demônio que a faz comer (literalmente) os rapazes de sua escola sempre teve algo de fascinante, culturalmente falando. Na época, o longa foi visto como pouco mais de um fracasso de bilheteria que selou a rejeição de Fox como um grande chamariz de público - uma sentença significativa para o momento que ela passava em sua carreira.
2009 foi um ano de virada para Megan Fox, e não em um bom sentido. Após ascender à fama como a Mikaela Banes de Transformers, dois anos antes, ela estrelou naquele ano a continuação A Vingança dos Derrotados. Durante a divulgação do filme, Fox fez a sua hoje infame brincadeira sobre o diretor Michael Bay ser “um ditador nos sets de filmagem, mas vulnerável, frágil e envergonhado na vida real”. Dias depois, uma suposta carta da equipe de bastidores de Transformers foi liberada à imprensa, acusando a estrela de se comportar de forma grosseira no set.
O próprio Bay desmentiu o conteúdo da carta e assegurou à imprensa que ele e Fox ainda se davam bem, declarando inclusive que estava ansioso para voltar a trabalhar com ela. Palavras vazias: quando o terceiro filme de Transformers chegou aos cinemas, em 2011, a personagem de Fox foi colocada de escanteio sem cerimônia, e a modelo Rosie Huntington-Whiteley assumiu o papel de interesse romântico do protagonista Shia LaBeouf. O fracasso de Garota Infernal sem dúvida teve seu papel nessa troca, talvez tanto quanto o ego ferido do cineasta.
É curioso (para não dizer enfurecedor) pensar hoje no quanto a reação virulenta a este filme em específico, nesta época em específico, tem a ver com a imagem de Fox vendida por Hollywood. Como a própria Kusama reconheceu no perfil do Buzzfeed, seu pecado com Garota Infernal foi não prestar atenção no que o estúdio estava fazendo com ele. O pôster mais famoso do longa mostra Fox de salto e minissaia, pernas cruzadas em uma cadeira, com a frase “hell yes!” rabiscada na lousa atrás dela. Os trailers usam e abusam da única e rápida cena em que a atriz aparece “nua” (sem mostrar nada demais), quando está tomando banho em um lago.
Em 2018, na sua própria reavaliação de Garota Infernal, a Vox perguntou: “Por que tantos críticos da época pareceram achar que este filme escrito e dirigido por mulheres tinha a intenção de ser um soft-porn voltado para o público masculino?”. A resposta está só mesmo no material promocional, porque o longa em si não poderia estar mais distante disso. No texto esperto de Diablo Cody, Garota Infernal é uma história sobre a dinâmica complicada da amizade feminina - a Needy de Amanda Seyfried é tão protagonista, se não mais protagonista, que a Jennifer de Fox -, e uma avaliação amarga das consequências do abuso misógino na mente e comportamento de jovens mulheres.
Como colocou a Vox, a história mostra como o corpo de Jennifer “é sacrificado no altar do avanço profissional de um grupo de homens poderosos”, e como eles “fazem do tormento dela uma atividade recreativa para estreitar os laços entre si”. Tudo soa arrepiantemente familiar, é claro, em um mundo pós-movimentos de denúncias de abuso e assédio sexual em múltiplas indústrias (incluindo a de Hollywood). Seria ingênuo chamar Garota Infernal de presciente, no entanto. Ele só usou uma história de terror e fantasia da forma como elas são usadas há séculos, para expor uma verdade íntima ao artista que as criou.
Esta verdade em específico as mulheres sempre souberam, mas o mundo se recusava a ouvir - e essa recusa sempre fez vítimas, em todos os níveis, de todas as gravidades. A carreira de Megan Fox (e das outras mulheres envolvidas no filme!), o seu status como uma das maiores estrelas de cinema de sua geração, foi mais uma dessas vítimas.
A Megan-ssance
Como eu disse lá em cima, tudo começou em 2016. Ao mesmo tempo em que a reavaliação de Garota Infernal acontecia, Fox retornava aos holofotes com os dois filmes de Tartarugas Ninja e, principalmente, suas aparições como Reagan na série New Girl. A personagem, inicialmente usada como “tapa-buraco” para a licença maternidade da estrela Zooey Deschanel, acabou caindo nas graças dos fãs e ficando por bastante tempo depois disso.
Em 15 episódios ao todo, Fox interpretou uma mulher de negócios inteligente, confiante e - como a própria atriz - bissexual. Chegando na 5ª temporada, Reagan foi saudada pelos críticos como uma lufada de ar fresco para a sitcom, e também marcou a primeira vez que Fox foi discutida em termos de talento, e não de aparência, na imprensa. New Girl reconhecia o status de sex symbol da atriz, sim, especialmente com os colegas de quarto de Reagan brigando por sua atenção, mas também permitia que ela transcendesse e tirasse sarro desse status com a inteligência que sempre foi latente da persona de Fox.
É essa mesma inteligência, essa consciência de si própria, que brilha nas escolhas que a atriz fez desde então. No bom drama indie A Mulher Invisível (disponível no Looke) ou no thriller vampiresco As Passageiras (da Netflix), seus papéis mais curtos sempre modulam algum nível de paródia de si mesma, de uso da sua imagem e do seu histórico em Hollywood para o benefício da narrativa. Já em oportunidades maiores, como a divertida ação trash Rogue - Selvagem (no Prime Video) e o ótimo suspense de sobrevivência Até a Morte (nos cinemas), ela tem construído personagens resilientes que contrapõem de forma radical a fragilidade inerente à posição de pin-up em que era colocada em outras eras.
Este parece ser o tom dos projetos que estão no horizonte, também. Na primeira categoria, ela deve aparecer na comédia Good Mourning, escrita e dirigida pelo noivo Machine Gun Kelly; e no thriller Johnny & Clyde, como (atenção!) uma chefona do crime e dona de boate que protege seus negócios com a ajuda de uma entidade demoníaca que comanda. Na segunda, Fox vai voltar aos blockbusters de ação com Os Mercenários 4, reforçando o elenco cravejado de astros de ação da franquia, que já inclui Jason Statham, Sylvester Stallone e Dolph Lundgren.
A Megan Fox que voltou às nossas telas não é tão diferente da Megan Fox que conscientemente criou uma personagem “atrevida” e “ultrajante” para a mídia nos anos 2000, como forma de tomar um pouco de poder e controle sobre a própria história enquanto repórteres a descreviam em termos grosseiramente físicos. A energia por trás das suas atuações e das suas escolhas como figura pública é a mesma, parte performance pop autoconsciente e parte esforço genuíno para ser levada a sério como artista. É uma mistura fascinante, que resulta em uma presença cultural única.
Pouco mais de uma década atrás, no entanto, nós negamos a ela o direito de ser essa presença, porque não cabia na nossa cabeça que ela pudesse ser. Como nos mostra hoje o reabilitado Garota Infernal, nós tínhamos uma noção muito torta de quem eram os heróis e quem eram os vilões da história. Bom, perdoe nossa estupidez, Megan… e bem-vinda de volta.