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Mostra de cinema de SP: <i>Dez minutos mais velho: o trompete</i>

Mostra de cinema de SP: <i>Dez minutos mais velho: o trompete</i>

16.10.2003, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H15

Em parceria com os produtores Nicholas McClintock, Nigel Thomas e Ulrich Felsberg, este último o seu parceiro habitual, o cineasta Wim Wenders idealizou a série de curtas Dez minutos mais velho. Nela, quinze diretores de renome contam com dez minutos cada para tratar um tema comum: a relatividade do tempo. Até agora são dois filmes da série. O primeiro, Dez minutos mais velho: o trompete (Ten minutes older: the trumpet, 2002) reúne os diretores Aki Kaurismäki, Victor Eríce, Werner Herzog, Jim Jarmusch, Spike Lee, Chen Kaige e o próprio Wenders.

Não, não é uma homenagem ao Jazz. O instrumento do título destaca-se apenas na trilha sonora de transição entre um curta-metragem e outro. Aqui, na verdade, impera a heterogeneidade - Herzog e Lee evocam o documentário, Wenders investe no experimentalismo, Kaurismäki e Kaige brincam com o nonsense, Eríce e Jarmusch fazem melancólica poesia em preto-e-branco.

Aki Kaurismäki

O finlandês abre a série de forma monumental, com Dogs have no hell. Talvez o espectador o confunda com o premiado O Homem sem passado (Mies vailla menneisyyttä, 2002), filme anterior do diretor. Não é por menos: a trilha sonora de rock cigano e o casal de protagonistas são os mesmos. Aqui, Markku Peltola interpreta um homem que decide largar o emprego para trás e partir para um sonho estranho, trabalhar duro nos campos petrolíferos na Sibéria. Não sem antes pedir em casamento o grande amor de sua vida, a garçonete vivida por Kati Outinen. O humor sutil e inimitável de Kaurismäki não agrada todos os gostos. Mas acompanhar o excêntrico carisma do casal, nos corridos dez minutos que antecedem o embarque no trem, é uma experiência singular.

Victor Eríce

O espanhol introduz a densidade na coletânea, com Lifeline. As várias gerações de uma família espanhola reúnem-se durante dez minutos de uma tarde de sol, na sexta-feira de 28 de junho de 1940, dia em que os nazistas atravessaram a fronteira entre a França e a Espanha. O clima de tensão é marcado quando uma mancha de sangue surge no berço do bebê adormecido. Ninguém percebe, devido ao silêncio no quarto. Na cozinha, a avó rega a massa. Escondido, um menino escuta as batidas imaginárias de um relógio desenhado no pulso. No jardim, uma menina brinca no balanço. A conotação política faz sentir-se - como se os hábitos seculares da vida comum não seguissem o ritmo das mudanças do Século XX -, mas o curta se sustentaria muito bem sem ela, apenas com a sua feliz escolha de imagens.

Werner Herzog

Thousands years old é um curta atípico do diretor alemão, mas de impacto entre os brasileiros. Em 1981, uma equipe de filmagens entra na Floresta Amazônica e proporciona a uma tribo indígena o seu primeiro contato com o mundo exterior. Dez anos depois, de volta à aldeia, a equipe constata que os nativos já se acostumaram com a civilização - os mais jovens falam português e negam as raízes, os mais velhos morrem de tuberculose, doença trazida pelo homem branco. Antes, o povo local não conhecia o controle do tempo, a não ser pela observação dos astros. O curta termina, melancolicamente, com o chefe da aldeia ouvindo os tique-taques de um despertador junto à orelha.

Jim Jarmusch

Minimalista e corrosivo, Int. Trailer. Night. mostra que o diretor norte-americano continua afinado, apesar do seu auge ter acontecido na primeira metade dos anos 80. Jarmusch aproveita bem o tempo e imprime significado em cada ângulo, cada tomada. Durante as filmagens de um filme fictício, uma jovem atriz (Chloë Sevigny) consegue dez minutos de intervalo em seu trailer para descansar. Coloca um Jazz para tocar, recebe um telefonema de uma pessoa querida, mas não consegue se esquivar dos auxiliares que invadem seu trailer sem cessar. A escolha de Chloë para o papel é emblemática: ícone do cinema alternativo dos Estados Unidos, lançada em Kids (de Larry Clark, 1995), a atriz simboliza muito bem, com o seu ar blasé, o vazio das celebridades.

Wim Wenders

O artífice da série quer marcar presença, e escolhe uma forma polêmica de filmar Twelve miles to Trona. Se a mania de contar história de trás para frente hoje toma conta da indústria, o alemão radicaliza: o filme é exibido em pleno rebobinar, assim, os diálogos e a trilha sonora são incompreensíveis. Uma espécie de Paris, Texas (de Wenders, 1984) ao contrário, a história começa numa cama de hospital. Bill (Charles Esten) agoniza ao lado de uma mulher, Kate (Amber Tamblyn), possível namorada. A cena é antecedida pela tensa direção de Bill por uma estrada deserta, enquanto tenta se comunicar com Kate pelo celular. O curta-de-estrada é compreensível, apesar do formato. Pena que a idéia se esgote mais rápido do que os dez minutos.

Spike Lee

Em We Wus Robbed, o nova-iorquino não foge do tema central da série, e ainda consegue falar de um assunto urgente, a fraude eleitoral que elegeu George W. Bush presidente. Aqui, a relatividade do tempo fica expressa nos poucos minutos que separaram a esperança de vitória dos democratas, momento de euforia, e o pedido de recontagem de votos negado pela justiça, instante de silêncio e derrota irrevogável. Lee não arrisca virtuosismos. Filma de maneira tradicional, alternando depoimentos. Peca por não ouvir o lado dos republicanos e por um certo descuido no final, quando o curta acaba abruptamente. Talvez falte ao seu registro seco, impessoal, um pouco do sentimentalismo manipulador de um Michael Moore.

Chen Kaige

O nome desse chinês merece ser memorizado. Atento às transformações por que passa a sua Pequim, exibe, em 100 flowers hidden deep, o abismo que separa a modernidade dos hábitos arraigados no país. Uma equipe de mudança é contratada por um senhor para ajudar no transporte de móveis de uma casa. No percurso que atravessa os arranha-céus do centro, o homem não reconhece a paisagem. Começa a se familiarizar quando o caminhão passa por algumas demolições. Assim que chegam finalmente ao destino planejado, um gigantesco aterro com uma única árvore impune, não há qualquer casa no local. Mas o homem, aparentemente insano, indicando vasos e mesas imaginárias, convence os carregadores de que ali existe uma construção secular, do tempo dos samurais. A sugestão de Kaige pode ser um tanto didática e limitada, mas a simpatia do curta supera as eventuais obviedades.

Um final digno para um filme de altos e baixos, no qual impecável mesmo só a trilha sonora.

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