Contando a história de personagens femininas desde a década de 1930, com A Branca de Neve e os Sete Anões, a Walt Disney conquistou geração após geração de crianças com suas belas e delicadas princesas. Mas, mesmo que tivessem personalidades fortes, elas dificilmente derrotavam o vilão com suas próprias mãos. Sem os corajosos príncipes, as protagonistas não eram capazes. Somente em 19 de junho de 1998, o estúdio gerou uma ruptura significativa nesse tipo de representação. Com uma protagonista feminina tendo que lidar com os dramas da guerra, a Disney apresentou não apenas uma animação de sucesso, mas um símbolo da força feminina.
Hua Mulan (Fa Mulan, em cantonês), porém, não é uma criação do estúdio de animação e certamente não inspirou homens e mulheres somente a partir dos anos 1990. A história da heroína é lendária na China. Não se sabe com exatidão quando começaram os relatos, mas os registros mais antigos são do século V, durante a Dinastia Wei do Norte.
Um poema folclórico da época, conhecido como “A Balada de Mulan” (leia aqui, em inglês), narra a jornada de uma jovem que, sem o conhecimento da família, se disfarça de homem e se alista no exército no lugar do seu pai, como na animação. Porém, a história original conta que Mulan viveu mais de dez anos em meio a batalhas, sendo nomeada general e recebendo, inclusive, a oferta do Khan para se tornar um ministro. Sim, a guerreira consegue manter seu disfarce por todo esse tempo e volta para casa com grande reconhecimento. Quando chega à sua cidade natal e se veste com trajes femininos, ela surpreende seus camaradas, que ainda pensavam admirar um homem como eles. Assim, os últimos versos do poema concluem que quando duas lebres correm lado a lado é difícil diferenciá-las.
De lá para cá, a história ganhou muitas variações, que distinguem desde a grafia do nome da guerreira - Mulan ou Mu Lan - até eventos relevantes da jornada da heroína. Há versões em que ela se revela mulher para os soldados durante um confronto difícil. Noutras, Mulan chega em casa feliz com suas condecorações, mas descobre que seu pai faleceu. Há ainda a versão em que, ao final de tudo, o imperador ordena que a protagonista se torne sua concubina e ela comete suicídio.
Independentemente do enredo que você prefira, fato é que a lenda da mulher corajosa que vai para a guerra para poupar seu pai sobreviveu durante séculos no imaginário do povo chinês. Primeiro, enquanto história oral, como uma esperança e um incentivo para os soldados do Império, que enfrentaram tantas guerras durante séculos. Depois, mantida como uma narrativa tradicional graças à peça popular do século XI Lady Mulan e à adaptação para romance, no século XVII, passou a ser uma inspiração para as crianças, principalmente para as meninas, com a incorporação da lenda aos conteúdos escolares no país.
Quando chegou aos cinemas como a animação da Disney, a história ganhou alcance global e, certamente, novas camadas. Não só pela adição do humor e dos numerosos elementos ocidentais - quem não lembra do Mushu citando o Batman? -, mas também pela extensão da discussão sobre identidade.
Nas músicas, fala-se muito sobre o papel social esperado de cada gênero (“Você vai nos honrar” e “Homem Ser”) e sobre como a heroína não consegue se reconhecer na figura da mulher casada e submissa (“Imagem”), uma discussão que ganhou força, sobretudo, no século XX. Mesmo com as mudanças na narrativa para se adequar à época, a jornada de superação da personagem animada manteve o espírito da lendária figura chinesa, tornando-se símbolo da força da mulher, que enfrenta as adversidades e faz a diferença. Não à toa, no Brasil, “Homem Ser” é cantada por muitas mulheres, até hoje, como “Vou Vencer”.
Agora, com o live-action, nasce a possibilidade da guerreira conquistar uma nova geração de meninas, num momento em que, mais do que nunca, o debate sobre a misoginia e as desigualdades entre homens e mulheres tomou os holofotes em Hollywood. O lançamento está previsto apenas para 2020, mas, se depender dos fãs, seja com ou sem o novo filme, a história de Mulan não se perderá. Nem agora, nem daqui a alguns séculos.