É praticamente impossível imaginar um mundo sem filmes de zumbi. O subgênero já foi tão explorado - até fora do terror - que muita gente vê saturação em histórias do tipo. Há 51 anos, em 1 de outubro de 1968, não era bem assim, e se não fosse por um erro burocrático envolvendo A Noite dos Mortos-Vivos, é bem possível que toda essa popularidade atual nunca existisse.
Por si só a obra de George Romero merece todo o crédito: o filme é um marco do cinema de baixo orçamento, que não só estabelece a ameaça da horda de mortos-vivos como também entrega tensão e ação combinados com uma boa camada de comentário social, colocando um herói negro que desafia estereótipos da época - e uma traiçoeira conclusão com impacto atemporal. O longa também não economiza na violência, algo que pegou de surpresa o público dos anos 60, especialmente considerando que não havia um sistema de classificação etária para garantir quem assistiria nos cinemas: “O filme deixa de ser deliciosamente assustador na metade e se torna inesperadamente aterrorizante”, descreve Roger Ebert, crítico do Chicago Sun-Times. “Havia uma garotinha na fileira ao lado, que talvez tinha uns nove anos de idade, que estava imobilizada em seu assento, chorando.”
Mas o que alavancou Noite dos Mortos-Vivos de um ótimo filme para um verdadeiro fenômeno cultural não tem só a ver com o conteúdo, mas também com a distribuição. Acontece que o filme originalmente era chamado de Night of the Flesh Eaters (ou A Noite dos Devoradores de Carne em tradução livre) mas, como o nome era muito parecido com o da produção de The Flesh Eaters (1964), a distribuidora Walter Reade Organization pediu que o título fosse alterado para Night of the Living Dead. A mudança repentina veio com um deslize: para garantir os direitos autorais de uma obra audiovisual na época, era preciso sinalizar o símbolo de copyright (©) junto com a abertura do filme. Quando o título foi alterado, a produção esqueceu de sinalizar a propriedade intelectual. Um pequeno errinho, certo?
Na verdade, a ausência do símbolo garantiu que Noite dos Mortos-Vivos fosse lançado diretamente como domínio público, ou seja, qualquer um poderia simplesmente obter uma cópia e exibi-lá em público quantas vezes quiser, até mesmo cobrando ingressos. Enquanto isso pode ter pesado no bolso da distribuidora original, que não estava embolsando o valor das bilheterias, o acidente permitiu que o longa fosse amplamente exibido em eventos menores, cinemas de pequeno porte, drive-ins e todo tipo de estabelecimento que quisesse passar o tão-falado terror indie.
Além disso, domínio público também permite que diversos autores contribuam com os personagens e conceitos da obra em questão. Basicamente qualquer cineasta agora podia usar os zumbis de Romero em seus projetos - e foi exatamente isso o que aconteceu, com uma verdadeira infestação de filmes com os caminhantes. O melhor exemplo disso talvez venha da Itália, prolífera indústria cinematográfica de baixo orçamento, que lançou cineastas de peso a partir de imitações e reinterpretações do filme americano, como Zumbi 2 - A Volta dos Mortos-Vivos (1979), uma sequência não-oficial de Noite dos Mortos-Vivos pelo mestre do horror Lucio Fulci.
O filme permanece em domínio público até os dias de hoje, estando disponível no Internet Archive e até mesmo no Youtube, na íntegra. A obra também não foi tão afetada pelo ocorrido, tendo retorno de US$30 milhões em um orçamento minúsculo de US$110 mil. O filme também foi pontapé para a prolífera carreira de Romero, que comandou uma franquia de peso com O Despertar dos Mortos (1978), Creepshow (1982) e muitos outros. O cineasta infelizmente faleceu em 2017 e, ironicamente, a confusão que o consagrou como um mestre do horror teve conclusão logo em seguida: em 2018, a Criterion Collection anunciou uma versão 4K do clássico, a primeira remasterização licenciada do clássico. Essa, por sua vez, tem seus direitos autorais preenchidos.
Artigo originalmente publicado em 13 de setembro de 2019.