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Crítica

O Abismo Prateado | Crítica

Karim Aïnouz adapta os motivos do seu cinema para um Brasil em transformação

25.04.2013, às 21H38.
Atualizada em 03.11.2016, ÀS 15H01

Se um dos temas centrais do cinema brasileiro da Retomada foi o deslocamento, a fuga, como reflexo da abertura do país aos desvios e atalhos da globalização, hoje os filmes lidam com outro Brasil, pós-Lula, autosuficiente mas preso aos seus próprios limites. É o terror da estagnação, do arcaísmo social, presente em obras nacionais recentes que estão se tornando paradigmas, como Trabalhar Cansa (2011) e O Som ao Redor (2012), e presente também, de forma mais discreta, em O Abismo Prateado (2011).

o abismo prateado

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O cineasta cearense Karim Aïnouz passa por esses dois processos históricos. Filmes seus como O Céu de Suely e Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo tratavam de inconformidade, de uma procura cujo fim estava não em pertencer a um lugar, mas no próprio ato de se deslocar. Com O Abismo Prateado, Aïnouz retoma elementos da sua série de TV Alice - a descoberta da metrópole como um lugar para perder-se em si - e tenta achar uma razão não no exílio, mas na permanência.

O filme, que se inspira em "Olhos nos Olhos" de Chico Buarque, começa com um plano de mar. Um homem, Djalma (Otto Jr.), sai da praia no Rio de Janeiro e caminha de sunga pelas ruas até chegar em casa, onde ele transa com a sua esposa, a dentista Violeta (Alessandra Negrini), e despede-se antes de pegar um voo para Porto Alegre. No meio da tarde, Violeta recebe uma mensagem de voz do marido, dizendo que não vai voltar e que não a ama mais.

Tradicionalmente, de Os Incompreendidos a Abril Despedaçado (um dos exemplares dos filmes de diáspora da Retomada), o oceano simboliza um ponto de fuga. Em O Abismo Prateado é o contrário: o barulho das ondas quebrando parece exercer uma força de oposição, que estreita e espreme o Rio de Janeiro com os morros. Não há fuga possível, senão anulando-se; Djalma parece um alienígena, é o único seminu na rua em meio às pessoas vestidas para o trabalho, quando o Sol nasce, e mesmo em casa sua nudez soa como desapego, como se ele já não estivesse ali.

Enquanto isso, Violeta parece não sentir a vida compartimentada que leva. O Abismo Prateado é um filme que toca no terror da estagnação de forma discreta porque todas as coisas que cercam a personagem nos parecem, à primeira vista, muito naturais, desde beijar o marido pelo vidro do box do banheiro até admirar-se no espelho da academia. Só percebemos o desarranjo dessas pequenas coisas depois, quando Djalma diz de repente que não quer mais aquela vida: o beijo pelo box vira um relacionamento impessoal, o espelho da academia se torna um simulacro de realizações.

Uma vez que Violeta (e o espectador) se abala com a notícia da separação, é como se começassemos a ver tudo ao redor com olhos mudados, e a excelente direção de arte de O Abismo Prateado sabe pôr no caminho da personagem elementos do cotidiano que pontuam o mal estar - desde as formas que encontramos para nos cercear fisicamente (o filho joga basquete sozinho no quintal, a grade com lança na casa tampa a vista da praia, o táxi estaciona diante de uma vitrine com grades, uma menina chora escondida pelo vidro fumê) até espiritualmente (o Brasil do filme é uma terra de placas, sinalizada com limites e diretrizes, "não mexa a cadeira do dentista", "não fume", "preste atenção", "respeite a vida").

A opção pela proporção de tela de 2,35:1 - a mesma janela horizontalizada que em O Som ao Redor ajuda na claustrofobia - dá à direção de arte mais espaço para esses pequenos elementos, enquanto o trabalho de som do filme, cheio de barulhos no extracampo (marretadas, motores, cacofonias) sugerem ao mesmo tempo opressão e dinamismo. É um mundo em transformação esse Rio de Janeiro, afinal, e parece que estamos na China mutante de Jia Zhang-ke quando Violeta atravessa uma construção de edifício e vai parar na Mata Atlântica, com a cabeça sangrando, como se a descoberta de uma floresta em plena cidade - toda urbanidade se faz com palimpsestos - fosse antes de tudo um delírio, ou uma viagem no tempo.

Talvez neste filme de Aïnouz a permanência, portanto, já implique transformações. Violeta vai tateando o mundo aos poucos - ela sugere duas vezes que outros personagens tomem sorvete, por exemplo, antes de ela mesma se render a esse pequeno prazer - e quando enxerga a si mesma no outro (a relação que o filme faz entre Violeta e o personagem de Thiago Martins, também em flerte com a fuga) essa percepção se aguça.

É raro ver um jogo de duplos como esse, num cinema nacional que se acostumou a priorizar jornadas individuais. Aqui, porém, é essa duplicidade, a capacidade de entender no outro seus próprios dilemas, que puxa Violeta do abismo que é o horizonte de luzes de lantejoula dos carros e dos postes na rua. Ao longo do filme, Alessandra Negrini sempre foi enquadrada em close-up e os entornos ficavam frequentemente fora de foco. À medida em que o final se aproxima e a relação de duplos se firma, a câmera se afasta um pouco, recontextualiza Violeta, dá um espaço para ela respirar. Há um conforto possível, afinal, no mundo de coisas provisórias e impostas: o conforto da coletividade.

O Abismo Prateado | Cinemas e horários

Nota do Crítico
Ótimo
O Abismo Prateado
O Abismo Prateado
O Abismo Prateado
O Abismo Prateado

Ano: 2012

País: Brasil

Classificação: 18 anos

Duração: 83 min

Direção: Karim Aïnouz

Roteiro: Beatriz Bracher

Elenco: Camila Amado, Luisa Arraes, Milton Gonçalves, Sérgio Guizé, Thiago Martins, Alessandra Negrini, Otto Jr.

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