Projeto acalentado ao longo de dez anos pelo cineasta Sérgio Machado, O Rio do Desejo estreia nesta quinta-feira (23), transportando para o cinema a Amazônia do universo de Milton Hatoum e contando a história de três irmãos apaixonados pela mesma mulher. A trama acompanha a chegada de Anaíra (Sophie Charlotte) à casa que o namorado, Dalberto (Daniel de Oliveira), divide com os irmãos, Armando (Gabriel Leone) e Dalmo (Rômulo Braga). O longa é baseado em "O Adeus do Comandante", conto publicado no livro A Cidade Ilhada.
O diretor afirma que é um privilégio adaptar a obra do autor, que considera “o maior escritor brasileiro vivo”, e explica que essa narrativa literária traz um elemento que sempre busca em sua filmografia: o subtexto.
“Não quero fazer filmes sobre o que as pessoas falam, mas sobre o que elas escondem quando estão falando. O conto é todo silencioso. Acho que, nas primeiras três páginas, ninguém diz uma palavra. É só sobre sensações, mistérios, uma coisa quase sobrenatural que está acontecendo ali. Isso permeia a literatura do Milton e me encanta”, diz Machado ao Omelete. “A história central é muito simples, mas o que realmente encanta é o mistério que está por trás dela, a conjunção de forças, o que aconteceu lá no passado que mexe com a cabeça dos personagens.”
Justamente por isso, não foi tarefa fácil construir as complexas relações entre os personagens, que se complicam cada vez mais por causa do conflito amoroso. Ao comentar os desafios na criação de Anaíra, Sophie Charlotte evoca elementos da natureza, tão presentes no filme.
“Você tem um rio correndo na superfície e muitos movimentos, muitas outras correntezas acontecendo ali debaixo. A cena com o Armando, em que vou até o ensaio da banda dele e ele fala para passar uma borracha no que aconteceu, foi muito forte nesse sentido. A gente estava dizendo uma coisa, mas a pulsação era outra, era quase como se eu dissesse o oposto do que eu estava querendo. Foi muito revelador se despir de uma linha moral tradicional para dar vida a essa humanidade muito mais verdadeira e pulsante”, analisa a atriz, que dividiu várias cenas com o marido, Daniel de Oliveira, e teve a companhia do filho do casal, Otto, durante as filmagens.
Nesse intrincado enredo de sentimentos, o longa não busca eleger culpados, destaca Gabriel Leone, intérprete de Armando. “A beleza desses personagens está em um não julgamento, em olhar para eles de forma absolutamente humana, independente de erros, acertos e escolhas. Construímos camadas para todos eles, para que você consiga ter um pouco de empatia, se colocar naquele lugar e tentar entendê-los, mesmo se fosse fazer diferente. Para quem assiste, o filme se potencializa se a gente não entrar nesse lugar maniqueísta de quem está certo ou errado”, analisa.
Amazônia real na tela
Filmado em 2019, com boa parte das locações em Itacoatiara, cidade a cerca de 270km de Manaus (AM), O Rio do Desejo trouxe desafios diversos para elenco e equipe. Depender das condições naturais foi um deles, já que era necessário filmar na estação seca, com o rio ainda cheio, por exemplo. Deu certo, mas nem tudo seguiu o script: embora houvesse uma sequência de tempestade prevista na ficção, o grupo não conseguiu captar imagens de chuva. Foi preciso recorrer aos efeitos visuais para garantir na tela o resultado final.
Além disso, as cenas filmadas no barco de Dalberto exigiam uma estrutura mais enxuta do que o habitual. Já o intenso calor da região virou parte da rotina, algo com que os visitantes aprenderam a lidar depressa, apenas observando os costumes locais, como o recolhimento espontâneo dos moradores nas horas mais quentes do dia.
“Foi um processo realmente daqueles muito ricos, únicos, que vivi poucas vezes na vida. É engraçado, toda vez que senti isso num filme, deu certo: tem uma onda diferente rolando aqui. Quando a gente chegou e eu vi os atores completamente integrados com a cidade, com as pessoas sentadas nos bares, pensei: ‘Alguma coisa especial vai rolar’”, comenta Machado.
O contato com a natureza e o “bafo quente” da região são, aliás, algumas das memórias mais fortes desse período para Rômulo Braga, que dá vida a Dalmo. Segundo ele, o lugar se fez presente também no trabalho dos atores, inclusive de formas inusitadas. Em uma cena em que seu personagem vai ao encontro dos irmãos, ele acaba parando no meio do caminho, distraído com um inseto. Na ficção, tratava-se de uma libélula. Na vida real, a “estrela” foi outra.
“Esse dia foi muito curioso. Uma mosca azul desse tamanho entrou na minha camisa quando estavam filmando o meu rosto e eu reagi. O [diretor de fotografia Adrian] Teijido falou: ‘Que bela atuação!’”, lembra, aos risos.
O roteiro do filme é assinado por Machado, ao lado de Maria Camargo, George Walker Torres e do próprio Hatoum. A pedido do diretor, o autor criou novos contos, ampliando o universo da obra original - Dalmo, o terceiro irmão, é inspirado em uma dessas novas histórias. A parceria funcionou tão bem que o próximo projeto do cineasta é adaptar Cinzas do Norte, romance do autor amazonense.
“A inclusão do meu nome no roteiro foi um ato de generosidade do Sérgio, porque não sei fazer roteiro. Mas escrevi alguns textos, porque ele disse que um conto tão conciso não seria suficiente para um longa-metragem. Foi uma experiência muito bonita, ele sabe ouvir, deixa a vaidade de lado e prioriza o que é melhor para o trabalho”, afirma Hatoum, que comemora o fato de o longa mostrar uma Amazônia real e não “a Amazônia exótica, para inglês ver”.