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Obscurinho do cinema

Obscurinho do cinema

25.10.2004, às 00H00.
Atualizada em 18.10.2017, ÀS 15H02


Sam Peckinpah em ação

Na ordem: Ben Johnson, Warren
Oates, William Holden e Ernest Borgnine

Em 1995, a Warner Bros. corrigiu um erro histórico, que já durava mais de vinte cinco anos. Graças a um lobby de cineastas como Martin Scorsese, o estúdio relançou o filme Meu ódio será sua herança (The wild bunch) em versão original, como concebida por Sam Peckinpah em 1969. Foi exibido aqui em São Paulo, no Cine Vitrine, e em algumas outras cidades do Brasil. Aqueles que não assistiram na telona, têm como consolo a versão em DVD. Mas não é a mesma coisa. Meu ódio... no cinema é descomunal, tanto em sua intensidade como na tragédia que norteia os personagens. Pode não ser o melhor filme de todos os tempos - a concorrência é grande - mas é o meu favorito.

A história se passa em 1913, na fronteira do Texas com o México. O velho-oeste está mudando, e não há mais espaço para o bandoleiro tradicional - o assaltante de trens, o ladrão de bancos. Alguns deles, inclusive, são obrigados a se adaptar à modernidade. É o caso de Deke Thornton que, depois de alguns anos preso, agora trabalha para um empresário inescrupuloso, responsável pelas ferrovias do local. Em troca da liberdade, Thornton concorda em caçar uma das poucas gangues ainda na ativa, que ameaça os negócios do empresário. O líder do bando em questão é Pike Bishop, criminoso de renome, e antigo parceiro de Thornton. Mas Pike sabe que já é velho e decadente, e que não vai durar muito nestes novos tempos. O grupo planeja então um último golpe, antes da aposentadoria. Acontece que o assalto é uma emboscada, e Pike é obrigado a fugir para o México com sua horda. Lá, se envolvem com um general corrupto chamado Mapache, para quem devem roubar uma carga de armas.

Na primeira cena, já dá pra ver que este não é um faroeste comum. Algumas crianças se divertem deixando um escorpião para ser devorado por formigas. Elas acham graça no bicho que se contorce, e ficam exaltadas conforme ele vai sumindo. Enquanto isso, Pike e seu grupo estão entrando na cidade, vestidos como soldados. A imagem das formigas é o contraponto perfeito à gangue. Seus membros, assim como o escorpião, estão imersos em uma onda de violência generalizada, que toma as crianças, eles e o mundo. É a maneira que o diretor encontrou de dizer que considera a violência parte do homem, e que é fascinado por ela. O conflito entre a estética de um bom banho de sangue e a repulsa que as imagens procuram causar no espectador, presente em toda obra do cineasta, valeria um tratado psicológico.

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Peckinpah era um sujeito genioso, turrão e briguento, que acumulou desafetos por todos os estúdios que passou. Nasceu em uma família de lenhadores, rancheiros e advogados de fronteira e, após um breve período no exército, virou roteirista e diretor de seriados de televisão. Seu segundo filme, Ride the High Country (1962), fez sucesso o bastante para que ele assumisse Major Dundee (1965), um bangue-bangue com Charlton Heston no papel principal. Conforme os dias de filmagens iam passando, ficava claro para a equipe que Major Dundee não tinha roteiro definido, e que a história era inventada no improviso. Peckinpah culpava a produção pelos atrasos, e demitia funcionários a torto e a direito. O caos culminou em um daqueles momentos memoráveis da história do cinema, com Heston montado num cavalo, apontando uma espada para o diretor.

Se eles se mexerem... Matem-os!

Temendo por um desastre maior, o estúdio resolveu picotar Major Dundee. O resultado é uma colcha de retalhos, e apenas alguns momentos dignos do diretor. Com o segundo casamento em frangalhos, cheirando e bebendo cada vez mais, Peckinpah ganhou fama de louco e foi demitido enquanto dirigia Cincinnati Kid, que seria seu filme subseqüente.

A boataria se espalhou e foram três anos no ostracismo até que um produtor confiasse nele outra vez. Phil Feldman concordou em fazer Meu ódio... na condição de que o ator Lee Marvin, embalado pelo sucesso de Os doze condenados (1967) e Fogo no Pacífico (1968), ficasse com o papel principal. Seu agente, no entanto, achava que dois filmes de ação já eram suficientes, e colocou Marvin para trabalhar em um musical qualquer. Quem acabou interpretando Pike Bishop nas telas foi William Holden.

Holden estava carcomido pelo tempo, bastante magro e com as costas arqueadas. Ainda assim, transmitia aquela aura de estrela de cinema. Era a escolha perfeita para liderar um bando decadente, que se recusava a aceitar os novos tempos. Meu ódio... tem ainda Ernest Borgnine como Dutch, Warren Oates e Ben Johnson, como os Irmãos Gorch, e Robert Ryan no papel de Deke Thornton. Apesar de bancar o elenco que o diretor queria, o maior mérito de Feldman foi entender como Peckinpah trabalhava. O que os produtores de Major Dundee consideravam caótico era na verdade um método, que consistia em encontrar, durante a realização de uma cena, a melhor maneira de criá-la.

A falta de planejamento, obviamente, custava mais dinheiro. Para se ter uma idéia, o tiroteio inicial da fita começou com 63 extras e apenas 23 cavalos. Ao meio-dia, o número tinha pulado para 230 pessoas e 56 animais. Quando as coisas não aconteciam do jeito que o diretor planejava - gastou no primeiro dia, por exemplo, todo estoque de munição e sangue falsos - Peckinpah demitia funcionários e enchia a cara. Feldman segurou as pontas até o fim, e só comprou briga com o diretor quando cortou dez minutos de Meu ódio... Não por censura, mas para que o filme pudesse ser exibido três vezes por dia, ao invés de duas. A versão completa só chegou aos cinemas em 1995, e é a que existe em fita e DVD.

Infelizmente, Meu ódio... fica menos exuberante longe da telona. As cenas de ação, que levaram a crítica Pauline Kael a chamar o diretor de "poeta niilista", são compostas por diversos ângulos, filmados simultaneamente e em velocidades diferentes. Nas telonas, o resultado é um mosaico de gente caindo e sangue jorrando, que vai da câmera lenta ao corte rápido, em um ritmo sem igual. Ao mesmo tempo, é um filme sobre velhice e amizade, tão carregado pelas neuroses e obsessões de Peckinpah, que acaba ganhando uma densidade quase filosófica. Dá até para arriscar uma comparação com Os sete samurais (1954), de Akira Kurosawa. Nos dois filmes, uma história de aventura que poderia ser banal torna-se uma obra tão complexa, que extrapola os limites do gênero.

Mesmo com os cortes, a fita fez um sucesso tremendo e, portanto, não é exatamente obscura. Mas já se vão quase dez anos do relançamento, e é sempre bom lembrar. Caso a polêmica em torno de sua violência fosse o único atrativo, Meu ódio será sua herança teria envelhecido mal. O que aconteceu foi justamente o contrário: sem a pecha de "chocante", ficou mais fácil enxergar suas qualidades.

Se fosse por mim, passava no Vitrine pelo menos uma vez por semana.

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