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Entrevista

Omelete entrevista o diretor e o roteirista de <i>Extermínio</i>

Omelete entrevista o diretor e o roteirista de <i>Extermínio</i>

24.07.2003, às 00H00.
Atualizada em 18.01.2017, ÀS 01H03

Danny Boyle

Alex Garland

A Londres deserta do começo de Extermínio

Esta entrevista foi concedida há muito tempo, para ser mais exato, em 17 de janeiro de 2003. Era inverno na Inglaterra e um dos assuntos preferidos no mundo cultural era um filme brasileiro chamado City of God, o nosso Cidade de Deus. O filme havia acabado de estrear e Danny Boyle, o diretor de Trainspotting e Cova Rasa, já havia assistido duas vezes. A conversa ia e voltava e a história de Rocket (Buscapé) e Lil’ Dice (Dadinho) voltava à pauta...

Mas não foi só disso que conversamos. Sabendo do passado quadrinhístico do roteirista Alex Garland, acabamos conversando com ele sobre os filmes baseados em HQs que estão sendo lançados, videogames (um vício ainda incurado) e até um pouco sobre o próprio Extermínio (28 days later, 2002), que deveria ser o assunto principal. ;-)

Alguns dias depois deste bate-papo, os dois voaram para os Estados Unidos, onde o filme foi exibido no Festival de Sundance, um dos mais importantes festivais de filmes independentes do mundo. Nem precisamos dizer que foram super bem recebidos... Danny, Alex e, claro, o filme.

Onde você achou aquela Londres tão deserta?

Danny Boyle: Tudo foi feito com a ajuda da polícia, que segurava o trânsito pra gente. Nós filmamos aquelas cenas no verão, muito cedo, em horários em que normalmente ainda não há muitos carros na rua e depois escurecemos algumas imagens, para parecer que era noite.

Você gostou de filmar com câmeras digitais?

Boyle: Quem mais gostou foram os policiais porque elas são muito fáceis de aprontar e nós conseguíamos montar tudo em questão de minutos. Daí, eles paravam o trânsito e nós conseguíamos criar aquela Londres deserta. Seria impossível fazer a mesma coisa com as câmeras convencionais [de 35 mm].

Ouvi dizer que você adorou Cidade de Deus.

Boyle: Fantástico! É um filme maravilhoso. Eu vi dois filmes espetaculares do Brasil, o primeiro deles muitos anos atrás, chamado Pixote. Eu vi este filme umas três ou quatro vezes. Cidade de Deus me lembra muito este outro filme, obviamente porque fala do crime que acontece nas ruas, envolvendo crianças. É verdade que ele usou atores que não tinham experiência?

É isso mesmo. Basicamente, ele usou as crianças da favela em vez de atores profissionais.

Boyle: É realmente um filme de tirar o fôlego desde a primeira cena até os créditos finais. Eu realmente me apaixonei por este filme.

Você também viu?

Alex Garland: Sim, vi ontem à noite. E também adorei! Quem é o diretor? Quantos anos ele têm?

Boyle: Ele tem uns 40 anos, se chama Fernando...

Fernando Meirelles.

Boyle: Mas ele era um diretor de comerciais.

Garland: Ah é?

Boyle: Sim. Dá para perceber isso. Ele tem um jeito bem comercial de filmar. Não que haja qualquer problema nisso! Se encaixa perfeitamente no filme.

Você acha que toda aquela violência que é mostrada nas ruas vai levar a este futuro apocalíptico de Extermínio?

Garland: Sim. Se ela não for controlada agora, se tudo continuar do jeito que está, este é o caminho natural. Acho que o que Extermínio e CDD estão mostrando são sociedades em que todas as leis existentes foram extintas. É uma realidade em que indivíduos criam suas próprias regras para sobreviver.

Há este paralelo bem claro entre os dois filmes. Mas o nosso é uma coisa mais surrealista e fantasiosa, CDD tem elementos que quase o transformam num documentário, como por exemplo o fato de não usar atores profissionais. Danny fez algo parecido com isso quando não chamou ninguém famoso para o elenco. Isso tem um efeito parecido, que é fazer você acreditar mais na história porque não há nenhuma informação adicional sobre este ou aquele ator famoso.

Boyle: E eu acho também que cinema é sobre sonhos e medos. Acho que os filmes que dão certo são geralmente bem simples. CDD gira em torno do sonho daquele garoto que quer ser fotógrafo. Contra ele está a realidade em que vive. É tudo muito simples, mas você não sente isso quando está lá sentado, assistindo.

Tem também um pouco do ingrediente que rendeu muitas críticas ao Trainspotting, que é mostrar um mundo terrível, que é ao mesmo tempo muuuuito atraente. A energia do filme é tão intensa que você acaba criando este problema moral, porque as crianças não deveriam gostar deste mundo que estão vendo, mas ele é muito atraente e cheio de energia.

Enfim, este é o problema do cinema. É isso que ele causa nas pessoas quando é bem feito.

Li que você gosta muito de videogames. Você ainda joga?

Garland: Sim, claro!

O que você está jogando agora? Algo cheio de zumbis e de violência?

Garland: Basicamente, jogo qualquer coisa que caia na minha mão, mas atualmente, estou curtindo coisas completamente opostas a isso. Estou jogando Animal Crossing, para Game Cube. É um jogo muito estranho porque acontece em tempo real. Se você joga no dia 17 de janeiro, no jogo é 17 de janeiro. Se é inverno, tem neve, se é verão, o sol brilha forte no céu. Não há violência, é um jogo completamente amigável. Você mora numa cidade, você tem lá a sua casa e vai tentar comprar os móveis, como na vida real, mas é mais cartunesco. É parecido com The Sims, mas é mais afetivo.

Eu adoro videogames e estou bem de saco cheio com o atual momento da indústria porque eles estão muito acomodados. Não há nesta indústria uma cena independente como no cinema. É como se só existisse o excesso que se vê em Hollywood. É muito melhor quando você pode ver Homem-Aranha e também Cidade de Deus. Não há nada comparável com CDD nos videogames. Como um viciado em videogames, isso me deixa muito frustrado.

Você pensa em mandar umas idéias de roteiros para as empresas que desenvolvem jogos?

Garland: Bem que eu gostaria, mas a realidade é que cineastas fazem filme e videogamemakers fazem videogame. Não é só porque você pode fazer um que você pode entrar na outra indústria.

Boyle: Como funciona isso? Existem pessoas que escrevem roteiros de videogames?

Garland: Às vezes, mas, para ser honesto, um dos principais problemas da indústria hoje em dia é o total desprezo que eles têm por um roteiro. Eles não estão nem aí para escrever uma história. Eles são como aqueles cineastas que não se interessam por roteiro, que só querem saber de efeitos especiais e cenas de ação. Sem contar que eles estão paralisados nesta idéia de só fazer jogos para meninos, tipo homens com armas e mulheres quase peladas. Eles não conseguem sair disso.

Se continuar assim, duvido que um dia alguém vai fazer algo equivalente a um O Terceiro Homem (The third man, de Carol Reed - 1949).

E vale dizer também que esta sua paixão nunca te levou a matar ninguém, que é o tipo de crítica que algumas pessoas fazem a alguns jogos e também a filmes como Trainspotting.

Boyle: Exato! A dramatização sempre usou violência. Basta ver os dramas gregos, alguns deles tinham cenas excessivamente violentas.

Como você escolhe as músicas para seus filmes?

Boyle: Do mesmo jeito que ele é viciado em videogames, eu sou com música. Eu escuto de tudo. Quando uma pessoa chega para mim e fala você ouviu tal coisa? e eu não conheço, vou atrás na hora.

Eu amo música e geralmente, quando você está trabalhando num roteiro, você acaba encontrando algo que encaixaria bem em determinada cena. Para Trainspotting, foi a banda Underworld, que eu dei para todo mundo ouvir. Em Extermínio, foi esta banda franco-canadense chamada Godspeed you! Black emperor. Eles são bem restritos em relação à liberação das músicas deles para filmes comerciais, mas eles viram o filme, gostaram e nos deram permissão de uso daquela música que aparece no começo, quando ele percebe que está sozinho, que é uma das partes principais do filme. Nós queríamos usar também estes hinos britânicos bem tradicionais, mas com uma voz bem diferente, daí achamos esta menina negra de Liverpool que canta com uma postura completamente diferente.

Cidade de Deus tem uma ótima trilha sonora também, muito bem utilizada.

E o que você pode dizer de Porno, a continuação de Trainspotting?

Boyle: Estamos trabalhando neste projeto. O livro é muito interessante porque usa exatamente os mesmos personagens depois de dez anos. É uma história muito inteligente, engraçada e que mostra os problemas daquelas pessoas que se envolveram pesadamente com drogas, sexo e violência. Mostra o que eles fazem dez anos mais tarde, quando começam a envelhecer e não têm mais aquela invencibilidade da juventude. O que fazer agora? Esta é a premissa do livro.

E é claro que se nós realmente formos fazer este projeto, nós queremos todos os atores trabalhando com a gente de novo. O grande problema é que eles não se parecem dez anos mais velhos. Na verdade, alguns até se parecem mais novos porque eles ficam passando um monte de cremes no rosto. Hahaha

É verdade que você teve problemas com Ewan McGregor por não escolhê-lo para A Praia?

Boyle: Nós tínhamos uma idéia de como seria o processo de escolha do elenco para este filme e por razões comerciais acabamos mudando o rumo das coisas e ele ficou bem chateado com isso. Mas acho que nós estamos numa boa agora e ele tem feito um ótimo trabalho de lá para cá. Espero que possamos trabalhar juntos de novo.

Claro que o público adoraria vê-lo de volta num filme como Porno. E Bob Carlyle também é outro ator que vem fazendo um ótimo trabalho e que todo mundo quer ver de volta como Francis Begbie, porque no livro, ele passou dez anos na prisão e sai meio violento, mas mais vulnerável, paranóico com esta história de ficar velho, ser pai, todo este tipo de problemas.

O livro [A Praia] teve boas críticas e o filme foi massacrado, como vocês lidaram com isso?

Garland: nós brigamos pra caramba! Não, brincadeira. Hahaha

Boyle: É sempre muito estressante lançar um filme porque você está sempre muito atrelado a ele, mas este foi mais. Nós fomos massacrados pela imprensa e o filme não conseguiu decolar.

Mas não podemos ficar só reclamando. Faz parte do negócio. Quando você faz um filme, você está sob os holofotes e se você não conseguir sair debaixo destas luzes, vai acabar se queimando. E naquela época, nós não conseguimos. Eu não acho que seja um filme ruim. É um filme decente, mas que não conseguiu driblar toda a atenção que tinha sobre ele.

Você acha que o grande problema foi ter o Leonardo DiCaprio, numa época pós-Titanic em que todas as atenções estavam voltadas para ele?

Boyle: Com certeza, muita bagagem vem como conseqüência dos atores com quem você está trabalhando. Por isso que em Extermínio, nós estávamos determinados de que teríamos atores desconhecidos. Nós não queríamos nenhum astro. A estrela do filme é a história. E é uma atitude que te dá muita liberdade, porque te dá total controle da situação. Você consegue mudar algumas coisas no decorrer das filmagens, você pode arriscar mais. Mas tudo tem a ver com dinheiro. Nada neste mundo é de graça. Quanto mais você pega, mais você tem que prestar contas.

Garland: Só uma coisa, Danny nunca reclama de nada, mas eu me sinto mais confortável em reclamar. Eu me lembro que naquela época eu fiquei bastante surpreso porque existiam duas realidades. Havia a realidade do público, que corria para ver o DiCaprio e a outra que era o filme. E as duas parece que nunca se encontraram. Não importava que tipo de informação Danny ou Andrew, o produtor, davam. Ninguém estava interessado e isso era muito frustrante. Eu olhava para o Danny, o Andrew e o resto do pessoal que estava fazendo o filme e pensava como eles iam conseguir lidar com tudo o que estava sendo falado ao redor do filme.

Saiu uma vez na Vogue que A Praia era o livro para se ter na estante e você era o homem para se ter em casa...

Garland: Agora você pode dizer para todo mundo como isso é uma enorme besteira!

Boyle: hahaha

O que você achou disso quando saiu? Foi uma boa propaganda?

Boyle: Eu provavelmente vendi uns livros a mais por esta frase. Foi tudo idéia do pessoal que cuidava da divulgação. Eles falaram vamos tentar vender o livro assim. Pra mim, isso não significa nada. Agora estou aqui, gordo, velho... Pelo menos minha namorada ainda pensa que eu sou o homem para se ter em casa. Hahaha

Bom pra você!

Garland: Ótimo para mim! hahaha

Como foi ver o seu primeiro livro virar filme? E tendo Leonardo DiCaprio no papel principal, que naquela época era o homem para se ter em casa.

Boyle: hahahaha

Garland: Não foi algo tão importante assim. É só um monte de palavras. Eu não me sinto tão apegado emocionalmente a tudo isso. Parece que foi há muito tempo.

O lado bom é que foi uma coisa interessante que aconteceu na minha vida. É como uma boa história. Tem gente que conta de quando foi para Paris, conheceu uma linda menina e eles acabaram se casando, as coisas não deram muito certo, eles se separaram, mas ainda assim não se arrependem do que fizeram. É mais ou menos como isso. Se um dia eu tiver filhos, eu com certeza vou deixá-los entediados contando mil vezes sobre aquela época em que eu tinha 25 anos e escrevi um livro...

Boyle: hahaha

Você também tem um passado ligado às histórias em quadrinhos. Você está gostando desta safra de filmes baseados em HQs que estão surgindo? Você gostaria de voltar a escrever uma HQ?

Garland: Eu acabei uma há pouco tempo. Uma história de oito páginas do Batman para a DC americana. Eu escrevi e os desenhos foram feitos pelo Sean Phillips.

Eu estou bem desapontado com vários filmes baseados em HQs que estão sendo lançados. Acho que os quadrinhos estão numa fase melhor do que essas que está sendo mostrada. Eu estou bastante curioso para ver A Liga [filme baseado numa obra de Alan Moore], porque é uma história que parece que pede para ser filmada.

O melhor filme que vi até agora sobre Quadrinhos, é na verdade um documentário sobre Robert Crump, do Terry Zwigoff, que depois fez Mundo Cão (Ghost World), do Daniel Clowes.

Tem também um filme que vai passar em Sundance chamado American Splendor, que é baseado numa HQ homônima, que eu estou muito curioso porque você olha para aquelas páginas e pensa isso nunca vai virar um filme. Mas eles fizeram e quero muito ver como ficou.

Qual seu personagem preferido?

Garland: No momento, é este cara chamado Daniel Clowes, que fez Ghost World e esta maravilhosa história surreal chamada David Boring e uma outra também brilhante chamada Como uma luva de veludo moldada em ferro [lançado aqui pela Conrad]. Acho que ele é um gênio e não há ninguém como ele na indústria dos quadrinhos ou de filmes.

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