Filmes

Entrevista

Paulina | Filme argentino sobre estupro estreia no Brasil com uma discussão política sobre a condição feminina

Walter Salles é coprodutor do longa, dirigido por Santiago Mitre, que fala aqui sobre exclusão no contexto da Argentina

13.06.2016, às 17H34.
Atualizada em 13.06.2016, ÀS 17H47

No momento em que o Brasil repensa a violência contra a mulher, após um caso de estupro coletivo que chocou o país no fim do mês passado, um thriller argentino que saiu de Cannes premiado em 2015, aclamado como um dos mais consistentes ensaios da América Latina acerca do machismo, enfim chega às telas nacionais: Paulina. Feito em coprodução com a Videofilmes de Walter Salles, o longa-metragem, dirigido por Santiago Mitre (de O Estudante) estreia ao Brasil nesta quinta-feira, chancelado pelo prêmio de melhor filme da mostra Semana da Crítica de Cannes e por uma láurea de excelência estética concedida pela Fipresci (a Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica) à sua narrativa febril.

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Na trama, inspirada no clássico La Patota, dirigido por Daniel Tinayre em 1960, a advogada Paulina (vivida por Dolores Fonzi, a atriz argentina nº1 do momento) opta por trabalhar como professora em uma região carente e, lá, torna-se vítima de um abuso sexual. Apesar da dor de ter sido estuprada, ela não abre mão de seus ideais, até que seu pai, um veterano juiz, decide agir. Nesta entrevista exclusiva ao Omelete, o cineasta de 35 anos, que fez fama como roteirista em sucessos como Abutres (2010) e Elefante Branco (2012), fala da cultura de agressão ao sexo feminino e dos novos rumos cinéfilos de sua pátria.

Como avalia a representação feminina que Paulina traz ao colocar sua protagonista em um contexto de violência?
SANTIAGO MITRE: Uma vítima precisa ser ouvida, acompanhada, assistida... nunca julgada, até porque não se pode saber, com exatidão, o que se passa na cabeça ou no corpo de alguém que passou por uma violência como o estupro. Eu tentei trabalhar o olhar para a minha personagem com esta preocupação, que se impôs desde o roteiro. Eu entrei nesse filme a partir de uma encomenda: produzir um remake do filme argentino La Patota. Mas, logo que comecei, percebi que questões relativas a uma realidade que já tem 50 anos permanecem iguais. E, frente a elas, Paulina parece uma figura muito controversa: é alguém de classe média alta que decide trabalhar em uma zona remota do nosso país, de altíssimo grau de conflito social. Vem um estupro, o que poderia levá-la a repensar suas decisões, mas ela opta por ficar, ultrapassando limites da razão. Eu não tenho como julgar uma pessoa assim. Eu preciso apenas observá-la. E, com isso, eu faço do filme um território de perguntas, um terreno vivo, de reflexão.

O que te atraiu no convite para ressuscitar o clássico La Patota (1960)?
MITRE: Ao revisitar os personagens trazidos naquele filme, eu poderia abrir de novo uma discussão sobre impunidade, que é o tema essencial a quem quer entender o papel da Justiça na América Latina. Na Argentina, a marginalidade semanifestademuitas formas. E, para entendê-la, eu preciso radiografar o mundo à minha volta. No cinema que eu faço, o ambiente, o cenário, é tão importante quanto as pessoas de quem eu falo. E investigar aquele cenário de exclusão econômica me servia como forma de radiografar as contradições do continente.

Seu nome é associado à linhagem do chamado “cinema político”. Como Paulina se articula com este filão?
MITRE: Há cinco anos, eu fiz um filme chamado O Estudante sobre um personagem que não acreditava em nada, um pragmático que avançava na vida sem perguntar o porquê das coisas. De alguma forma, Paulina é o reverso desse filme: aqui, a minha protagonista acredita nas coisas, sabe sempre porque faz o que faz e pensa nas causas diante de si. É daí que o drama em torno dela se desencadeia: Paulina se aferra às suas convicções iniciais como se fosse bote capaz de mantê-la segura no correr da maré. Ela se mantém de pé quando a lógica narrativa da dramaturgia tradicional pediria uma transformação. Quando eu penso no “cinema político”, meu interesse é explorar uma zona íntima, sem preconceitos ao avaliar o exercício do Poder. Preciso de questões do tipo: “como é fazer política? como vivem os políticos? como é seu ambiente?”. Há infinitas respostas, mas me interessa buscá-las a partir de uma perspectiva individual, humana.

Com que diretores você dialoga nessa busca?
MITRE: Não consigo dizer quem seriam meus parentes cinematográficos, mas gosto dos filmes que interrogam, que interpelam, que fazem uma aposta na inteligência do espectador. Agora, estou rascunhando um novo longa que continua essa busca a partir de ideias diametralmente opostas... e sem resposta aparente. A Argentina, o Brasil e outros países da América do Sul têm uma grande tradição no cinema político, seja de modo explícito ou sutil.

Como você avalia a atual situação criativa do cinema argentino?
MITRE: A Argentina é um país cinéfilo, uma pátria muito cinematográfica, em volume de produção, que passou por muitas instâncias ao longo de sua história no audiovisual: ou seja, muitas fases de pesquisa, muitos movimentos de vanguarda, muito do chamado nuevos cines. Tenho muito orgulho desse cinema que se fez aqui e tenho honra de dialogar, de alguma forma, com a tradição, o que não quer dizer que eu goste de tudo o que filmamos. Tivemos idas e voltas de qualidade e de correntes estéticas e é sempre possí- vel discutir políticas de produção e de financiamento. Quando escuto a expressão “Cinema Argentino”, eu sempre me agarro ao primeiro verbete, à palavra cinema, e, a partir dela, cito nomes como os de Fernando Birri, Lisandro Alonso, Raymundo Glayzer, Lucrecia Martel, Hugo del Carril, Leopoldo Torre Nielson, Fernando Solanas, Mariano Llinás… Há muitos outros bons, pois penso que o cinema está dentro da cultura do meu país. 

 

 

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