Zendaya foi manchete no início deste ano por se recusar a interpretar personagens femininas rasas. Segundo a atriz, a maior parte das ofertas que recebeu no último ano eram papéis sem um arco próprio. Eram ou a namorada passiva, ou um simples acessório da narrativa. "Geralmente elas servem o propósito de ajudar o personagem masculino a chegar onde precisa ou fazer o que tem que fazer. Elas parecem ter apenas uma dimensão", afirmou à revista GQ.
A experiência da jovem atriz não é um caso isolado. Pelo contrário, ela encontra eco, inclusive, nas estatísticas. De acordo com a pesquisa anual It’s a Man’s (Celluloid) World Report, do Center for the Study of Women in Television & Film, em 2020 38% dos blockbusters tiveram protagonistas femininas, um aumento de um ponto percentual em comparação ao ano anterior, mas, ainda assim, um cenário longe do equilibrado. Mesmo quando se olha o resultado referente a personagens femininas com falas, um recorde histórico (36%), é simples de entender a frustração de Zendaya: as atrizes não têm um material-base tão complexo quanto seus colegas homens.
Ainda que o movimento Me Too tenha jogado o holofote, entre outras questões, no chamado male gaze (“olhar masculino”, em português), é evidente como as mulheres têm pela frente um longo caminho até serem encaradas como as figuras tridimensionais que são. E isso passa invariavelmente pela noção do que de fato são “personagens femininas fortes”.
Há quem associe a expressão à força física. Há quem entenda que se trata de uma personagem que não se deixa envolver em romance algum e é movida única e exclusivamente pela sua moral inabalável. Há ainda quem pense que é uma ideia que sem exceção passa pela maternidade - sim, estou falando do James Cameron - ou pela sexualidade, isto é, ou é santa, ou é vagabunda. No entanto, ser uma mulher forte não é negar beleza, amor ou família. Não é ser um exemplo para uma geração de espectadoras. É ter o direito de ser tão contraditória como se é na vida real. É ser odiável, geniosa e complicada, como são personagens admirados da cultura pop - Homem de Ferro, Don Draper, não faltam opções. É ser doce e determinada, mas suscetível a erros. É se apaixonar sim, mas como um indivíduo ativo, não um mero objeto de interesse. É ser mais do que apenas um adjetivo. Talvez, por isso, melhor que “forte” seria se falássemos sobre personagens femininas complexas.
Embora não representem grandes bilheterias, a seleção de títulos do Oscar 2021 ilustra bem como dá para criar mulheres para o cinema com diferentes perfis, e ainda assim igualmente complexas. Tome como exemplo Fern, a protagonista de Nomadland. Sua doçura de modo algum diminui a valentia da personagem de enfrentar todas as adversidades que encontra pela estrada, nem a impede de ser teimosa e querer fazer tudo por conta própria. Mesmo que não seja de colocar o dedo na ferida, como é a cantora Ma Rainey, interpretada por Viola Davis em A Voz Suprema do Blues, Fern não é mais ou menos forte. Apenas diferente e, mesmo assim, tão de carne e osso quanto sua companheira de categoria.
A própria Ma Rainey é um ótimo exemplo de personagem que vai além dos estereótipos. Por mais difícil que seja trabalhar com a cantora, a adaptação da peça de August Wilson nunca a reduz à ideia da boss bitch. Sim, ela sabe o que quer, mas isso não a torna uma vilã. Pelo contrário, ela é tão vítima da situação quanto Levee (Chadwick Boseman) e os demais músicos da banda, porque ela tem camadas e tempo de tela para explorá-las.
Nesse sentido, é importante notar como o male gaze por vezes vem acompanhado não apenas da sexualização das personagens, mas também de um julgamento de valor que desaprova as mulheres, mas que exalta - ou vê salvação para - os homens. Por isso, é tão comum que o ato de ser controverso alce figuras como Walter White, de Breaking Bad, a ídolos, mas condene sua esposa, Skyler, como, digamos, persona non grata dentro do fandom.
Está nessa distorção o mérito da diretora Emerald Fennell e sua Cassandra (Carey Mulligan) em Bela Vingança. Tudo no filme brinca com as pré-concepções do espectador sobre o que é um bom moço, uma mulher meiga e indefesa e, em última instância, um ato de violência. Cassie, em toda a sua jornada de retaliação - e, de certa forma, autopenitência -, é uma personagem quebrada. Isso não diminui a gravidade das suas atitudes, mas escancara uma falsa normalidade que por muito tempo foi piada em comédias de besteirol, e ainda o é no mundo real. Essa construção esperta amplifica a potência da sua conclusão agridoce, e revela o quão rica pode ser a área cinzenta do que está escrito entre o preto e o branco.
Dava para falar ainda sobre a Soonja (Yuh-Jung Youn), a avó que, como bem define David (Alan Kim) em Minari, não serve cookies, mas aprecia uma boa luta na TV; Monica (Yeri Han), também do longa de Isaac Lee Chung, com sua firmeza e empenho; ou mesmo qualquer uma das outras indicadas ao Oscar deste ano. Porém, espero que a ideia já esteja clara: personagens femininas não deveriam ser fortes, mas sim verossímeis. Não se trata apenas de uma questão de representatividade. Personagens complexas elevam qualquer experiência cinematográfica, e está mais do que na hora disso deixar de ser exigência e virar regra.