Quando o público estranhou os efeitos especiais de The Flash, incluindo as feições desproporcionais e superfícies bizarramente suavizadas dos personagens de CGI, a resposta do diretor Andy Muschietti foi… dizer que essa era a sua intenção o tempo todo. Eu sei, eu sei, soa como a desculpa esfarrapada — mas, também, perfeitamente blindada — de quem já esperava ser confrontado por um trabalho feito às pressas. Mas sejamos caridosos aqui por um momento: e se aceitarmos a declaração do cineasta como verdade?
"A ideia, claro, era estarmos dentro da perspectiva do Flash", disse Muschietti. "Tudo está distorcido em termos de luzes e texturas. Entramos neste 'mundo aquático', que é basicamente o ponto de vista de Barry. Fazia parte do design. Então, se parece um pouco estranho para você, foi intencional".
Que fique claro: não há nada de errado em um filme de herói que tenta situar suas cenas de ação em um mundo meio quadrinesco, por falta de palavra melhor. Distorção de proporções corporais e brincadeiras com texturas “alternativas” fazem parte do leque de artistas de quadrinhos desde a criação dessa arte, e sempre vão fazer. É excitante quando cineastas buscam incorporar a liberdade criativa de uma página em branco no mundo muito mais rígido, cheio de regras não-ditas, do cinema. É louvável quebrar essas regras e buscar um visual memorável, fugindo do marasmo no qual o cinemão comercial americano entrou nas últimas décadas. Só não é isso que The Flash faz.
Se a ideia com os efeitos especiais do filme era “entrar na perspectiva do herói” e explorar como a sua supervelocidade distorce as formas do mundo real, bom… faça isso! Um filme do Flash em que ele corre por paisagens de cores alongadas e cenas iluminadas com um senso teatral mais forte do que a média hollywoodiana parece uma ótima ideia — de fato, talvez a melhor ideia que um filme de grande estúdio teve, em termos de adaptação de outras mídias, desde que as irmãs Wachowski transformaram Speed Racer em um show de CGI caleidoscópico, com cenas de luta de Sessão da Tarde e um coração que mal cabe dentro do seu próprio peito.
Ao invés de Speed Racer, no entanto, o filme de Andy Muschietti foi comparado com as “artes” geradas por inteligência artificial que se proliferaram na internet nos últimos meses, uma espécie de devolução daquele deepfake horroroso do Henry Cavill na cena de abertura do Liga da Justiça de Joss Whedon. Por outro lado, sabe qual blockbuster foi caracterizado como “Wachowskiano” entre os lançamentos desse mês? Isso mesmo, Homem Aranha: Através do Aranhaverso.
Sim, é verdade: o segundo longa-metragem estrelado por Miles Morales (Shameik Moore) tem a vantagem de se localizar na mídia da animação, onde existem mais possibilidades visuais para qualquer artista — afinal, você não precisa apontar a câmera para nenhum lugar que vai modificar depois, a coisa toda pode vir direto da sua cabeça para a tela. Mas não é como se a maior parte dos estúdios de animação de Hollywood estivesse se aproveitando dessa liberdade antes de o primeiro Homem-Aranha no Aranhaverso provar que podia dar certo, lá em 2018.
Pelo contrário: da “careta DreamWorks” à repetição de design em rostos femininos na Pixar, a animação hollywoodiana mostrava, com raríssimas exceções, um leque visual muito estreito antes de Aranhaverso faturar quase US$ 400 milhões nas bilheterias e — de quebra — uma estatueta do Oscar. Nada é mais emblemático dessa mudança de paradigma do que a diferença gritante entre o primeiro filme do Gato de Botas, de 2011, e a elogiadíssima continuação de 2022. Ou talvez você prefira comparar o último filme animado das Tartarugas Ninja, lançado em 2007, com o material promocional do ainda inédito Caos Mutante.
E afinal, será que a diferença entre animação e live-action é mesmo tão gritante na era dos cenários, personagens e batalhas inteiramente geradas por CGI? Será que, no fim das contas, o que separa The Flash de Através do Aranhaverso não é só o quão longe os seus respectivos diretores quiseram ir, ou foram permitidos a ir, na exploração estética dos conceitos narrativos que trouxeram para a mesa? Muschietti quer nos vender uma escolha visual fora da curva quando o seu próprio filme não a abraça, não a sustenta de um ponto de vista narrativo e, principalmente, emocional.
Assim como o primeiro filme, Através do Aranhaverso merece o epíteto “épico” muito mais por suas ideias e emoções gigantescas do que por suas grandes set pieces de ação. E que audácia maravilhosa na proposta narrativa desse segundo filme: não refazer o ponto do primeiro, mas sim contradizê-lo. Desconstruindo toda a ideia de histórias compartilhadas e seu poder unificador que transborda do Aranhaverso original, este é um longa de amadurecimento que encara a autodeterminação como estrada solitária — a verdade é que ninguém, nenhum mentor, parente ou amigo, pode definir por você qual será a sua história. E, acredite em mim, eles vão tentar.
Generoso com seus personagens, mas inflexível com seu ponto de vista (e, portanto, com quem fica como “herói” e “vilão” nessa história), Através do Aranhaverso usa a liberdade que tem para ser uma extravagância visual e aproveita para ser também uma extravagância afetiva. Se, no universo de Gwen Stacy (Hailee Steinfeld), a ideia é criar um cenário de pinceladas largas e impressionistas, então elas vão mudar a cada corte para refletir o estado de espírito dos personagens. Se a ideia ao introduzir o Homem-Aranha Índia (Karan Soni) é mostrá-lo em uma metrópole que basicamente faz caricatura (carinhosa) da overdose de informação de Mumbai, bom… empregue o traço mais barroco possível em cada take.
O Punk-Aranha (Daniel Kaluuya) é todo ângulos agudos e aparece em cada universo no qual se intromete como um recorte de página de revista, com as bordas transbordando sua forma física. Ben Reilly é desenhado e se move como uma animação 2D dos anos 1990, porque é justamente esse tipo de mídia que o personagem está tentando parodiar com sua narração interna pseudosombria feita (é claro) por Andy Samberg. O primeiro Aranhaverso usava a imensidão do multiverso para afirmar que qualquer um pode ser o herói de sua história (afinal, “é só um salto de fé”), enquanto esse segundo a utiliza para explicitar, em cores tão fortes que seu ponto se torna irrefutável, que o último salto de fé que precisamos dar para nos tornarmos adultos é entender quem somos quando somos diferentes daqueles a nossa volta.
Em contraste, para quê The Flash usa o seu multiverso? Por todo o frisson em torno das participações especiais do filme (e nós também somos cúmplices desse hype!), elas estão lá para… na prática, no texto emocional da superfície do filme, nada. Que diferença as piscadelas do Superman de Nicolas Cage ou do Batman de Adam West fazem para a história de Barry Allen (Ezra Miller) descobrindo que precisa aceitar a tragédia que definiu sua vida desde a infância caso queira construir uma sombra de vivência adulta saudável? A magia do CGI, com distorções propositais ou não, está aqui a serviço apenas e somente da ânsia corporativa de minar a própria história por dinheiro em um mundo obcecado por “propriedade intelectual”.
Para ser justo, se você quiser olhar para o filme de uma forma mais metalinguística, talvez haja ali a ideia de que já tivemos adaptações de super-heróis demais, e de que a colisão delas só pode resultar em uma nostalgia vazia e, em última instância, caótica demais para se sustentar como realidade. Que essa crise de incongruência existe e já está chegando no público é inegável — o próprio The Flash está prestes a se tornar a vítima mais recente do fenômeno, com uma abertura espetacularmente decepcionante nas bilheterias americanas. Efeito colateral de ser um filme que não faz nada para apontar um caminho adiante nessa bagunça em que nos metemos, deixando transparecer o cinismo marqueteiro de seu aceno em direção a autoconsciência.
Não, a resposta aqui não é The Flash. É Através do Aranhaverso. Os números contam a história, e pudera: dada a oportunidade, você realmente escolheria uma parada de participações especiais em CGI mal terminado no lugar de uma explosão de arte pop, onde cada ideia estética e narrativa é perseguida até sua mais perfeita fruição? Há um motivo pelo qual Barry escolhe salvar sua mãe quando volta ao passado, mesmo sabendo das consequências — quando a situação aperta, o coração sempre vence.