A denúncia de um possível plágio no cinema, que teria gerado o roteiro do vencedor do Oscar Two Distant Strangers, viralizou na internet nos últimos dias. Mas o debate se estendeu e a conversa mudou de rumo. A questão agora é o racismo - que já é tema do filme - e quem pode ou não se apropriar de histórias negras para lucrar na indústria.
Tudo começou com um vídeo que a diretora Cynthia Kao compartilhou no TikTok falando sobre “similaridades” entre um curta que ela dirigiu e escreveu no final de 2016, chamado Groundhog Day For A Black Man (em tradução livre: Um dia em loop para um Homem Negro) e Two Distant Strangers, roteirizado por Travon Free, que também tem créditos na direção, ao lado de Martin Desmond Roe - que tinha acabado levar o prêmio de Melhor Curta-Metragem no Oscar 2021.
No curta de Kao, disponível no YouTube com mais de 3 milhões de visualizações, um jovem negro está preso no dia em que é morto por um policial branco, vivendo a data várias e várias vezes - basicamente a premissa do filme de Free, que está disponível na Netflix.
As coincidências apontadas pela diretora deixam de ser apenas coincidências quando ela conta que, no dia 28 maio de 2020, logo após o assassinato de George Floyd, um dos produtores do NowThis News entrou em contato pedindo para reproduzir trechos de Groundhog Day For A Black Man nas páginas do Facebook e no Twitter do site de notícias. Um ano depois, o mesmo NowThis News assume, em parceria com Six Feet Over, os créditos de produção de Two Distant Strangers.
@cynthiakao Thank you for the messages and tags. 🙏
♬ original sound - Cynthia Kao
“Eu não sei o que aconteceu, e não estou fazendo nenhuma suposição”, disse Kao ao finalizar seu vídeo. Mas seus seguidores fizeram suposições. Muitas delas. A fala da diretora viralizou nas redes sociais e muita gente está cobrando explicações por parte da Netflix. Na sessão de comentários de seu post no TikTok, falam também sobre processo contra os produtores do curta vencedor do Oscar e que o prêmio deveria ser entregue à ela.
De quem é a história?
Na concepção de tantas pessoas online, seria simples reparar o suposto erro da Netflix, do NowThis News e dos criadores do filme, não fosse toda a questão de raça envolvida. Um dos primeiros a mencionar isso, também por meio do TikTok, foi um terapeuta chamado Sha Rem. Negro e não binário, ele disse em seu vídeo que responderia Kao pois eles se seguem na rede social e ele respeita o trabalho dela.
“Primeiramente, quero dizer que nunca é certo que grandes empresas roubem ideias de criadores pequenos. Mas é muito importante reconhecer que há algo muito estranho errado sobre como você coloca o trauma que pessoas negras enfrentam em um loop”, começou Rem em seu vídeo. “Eu não me importo com quais foram suas intenções: você é uma mulher asiática e a história não é sua para contá-la”.
Já a resposta de Laila Jam foi mais combativa contra Kao e a premissa de Groundhog Day For A Black Man. “Cynthia, convenientemente, escondeu informações cruciais, como a mensagem de seu filme”, disse Jam, que exibe uma cena do personagem principal de Kao decidindo se tornar policial para continuar o ciclo de violência pois, “se não consegue vencê-los, melhor juntar-se a eles”.
Jam fala ainda que a Netflix só colaborou para colocar o filme no ar, mas que os créditos são todos de Trevor Free. Para embasar seu ponto, ela também usa uma imagem do roteirista e diretor explicando sua inspiração em uma entrevista: “Toda vez que eu ouvi um novo nome e uma nova história, eu entrava no mesmo ciclo de emoções físicas como tristeza, raiva, desesperança… E para mim é o que o filme representaria quando a ideia surgiu para mim”.
Em um discurso dividido em três partes no TikTok, Jam foi categórica: “Fico triste de ver pessoas da nossa comunidade (negra) apoiando Cynthia sem ter feito nenhuma pesquisa básica sobre o filme dela. Isso apaga a vitória de Trevor, pioneira nessa categoria do Oscar”, disse.
Por “pesquisa”, Jam ela está se referindo a uma suposta autora da ideia para o filme de Kao, Groundhog Day For A Black Man: Luvvie Ajayi, uma escritora nigeriana que, em uma texto publicado em 2015, antes do filme de Kao, descreveu a sensação de ver homens negros mortos constantemente como um looping de brutalidade policial. Ela usa a expressão “Groundhog Day”.
Jam também cita o filme Feitiço do Tempo (cujo título original é Groundhog Day), de 1993, que originou a ideia do looping de tempo no cinema. Este foi o mesmo argumento de Free, que se pronunciou sobre as alegações de Kao em um artigo no Washington Post, publicado na última quarta-feira (5). “O conceito de looping no tempo em filmes não é novo”, disse.
Free também citou o artigo de Luvie Ajayi, assim como o filme The Obituary of Tunde Johnson (tradução livre: O Obituário de Tunde Johnson) e um episódio de The Twilight Zone chamado "Replay”, mas, segundo o diretor, Feitiço do Tempo foi a principal inspiração.
“Tomando o filme de 1993 como inspiração, canalizei minha experiência, e a de tantos outros, para o processo criativo. Procurei usar o recurso familiar de um dia repetido sem parar para trazer empatia, compreensão e luz à constante tragédia da violência policial contra os negros na América. Foi a jornada de uma vida que culminou com nosso filme sendo adquirido pela Netflix e, eventualmente, sendo homenageado com um Oscar”, escreveu Free, concluindo que: “Nunca poderia ter imaginado que, apenas uma semana depois de ganhar um Oscar por compartilhar uma história nascida de meu trauma, que outra diretora, Cynthia Kao, sugeriria que meu filme tinha sido copiado do dela”.
Sofrimento na tela
Se há dúvida sobre o direito de Cynthia Kao em escrever Groundhog Day For A Black Man, há outros títulos, como o próprio Trevor citou no Washington Post, com a mesma premissa, assinados ou não por pessoas negras, para continuar o debate. Ao mesmo tempo, o sofrimento negro continua sendo contato com outras camadas e pontos de vista em Olhos que Condenam (baseado em uma história real), Corra, Them e outras obras escritas por autores negros consagrados e premiados em Hollywood.
Depois de anos clamando por representações negras na televisão e no cinema que fossem além de 12 Anos de Escravidão e outras histórias sobre o tema, é uma vitória para a população negra de todo o mundo ganhar novas representações por meios desses títulos e diretores como Ava Duvaney, Jordan Peele e Trevor Free. Mas, no final das contas, as narrativas ainda nos colocam em lugares de sofrimento, seja ficção ou não.
Se em 2017 Corra foi muito bem recebido por colocar um homem negro dentro da casa de horrores da família branca da namorada, em 2021, Them, tem causado controversas por colocar uma família negra para morrar em um bairro cercado de pessoas brancas. Ambos têm como objetivo mostrar o verdadeiro terror psicológico que é o racismo na vida de pessoas negras, mas o formato de sofrimento já não é mais tão palatável.
Logo, os formatos de looping no tempo que Groundhog Day For A Black Man e Two Distant Strangers trazem, apesar de educativos para uma população leiga (ou negacionista) em questões sobre racismo, é doloroso para a população negra que assiste.
Para além do debate sobre direitos de criação de histórias do time, se inicia um debate sobre quanta dor ainda precisa ser mostrada, ao que uma das criadoras de Them, a premiada Lena Waithe,defende ser muita: “As revoluções não deveriam ser fáceis”, afirmou a primeira mulher negra a ganhar um Emmy na categoria de Melhor Roteiro em Série de Comédia, em entrevista à Vogue americana.
Fato é que pautas sobre racismo não são novidades para criadores americanos. Séries como Um Maluco no Pedaço e Todo Mundo Odeia o Chris já falavam disso em outros tempos. A novidade, talvez, seja a exposição de como o racismo afeta pessoas negras e a comédia pode não mais ser o melhor recurso, já que as situações, definitivamente, não são engraçadas.