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O gênero do terror no cinema, da maneira como foi consumado nas bilheterias desde a década de 70, recorre frequentemente ao embate do urbano, do civilizado, contra o interiorano, o bárbaro. Desde os primeiros filmes de Wes Craven, como Quadrilha de sádicos (1977), até refilmagens recentes como A casa de cera (2005), a figura do outro (aquele que, em qualquer caso, é estranho a nós) é visto como aberrante - e perigosa.
Normalmente, em Hollywood, o outro personifica-se no caipira desdentado e iletrado. No caso do suspense australiano Wolf Creek - Viagem ao inferno, espécie de inflamação desse subgênero, ganha a forma de um legítimo Crocodilo Dundee. O tipo de chapéu e bota de couro de crocodilo, faca longa na cintura, camisa xadrez vermelha, sotaque enrolado, endurecido pela solidão e selvageria dos mais longínquos desertos do Outback australiano, é o maníaco da vez.
Neste seu filme de estréia, fruto do quinto roteiro que já produziu, baseado em um leque de fatos reais, o roteirista e diretor Greg McLean começa apresentando as potenciais vítimas. Liz (Cassandra Magrath) e Kristy (Kestie Morassi) são duas inglesas que, juntas com o australiano Ben (Nathan Phillips), deixam o cosmopolitismo das cidades à beira-mar para uma viagem de mochileiros país adentro.
Depois de dias de estrada, o Parque Nacional de Wolf Creek ainda está longe. Mas dá para perceber que o perfil das pessoas muda junto com a paisagem. Em filmes assim existe uma linha simbólica que divide o mundo racional do mundo selvagem: o posto de gasolina derradeiro na estrada poeirenta. O último sinal de civilização, por assim dizer, já se impregna de barbárie. Ben, Liz e Kristy param para abastecer e têm que ouvir piadinhas sexistas de gente suja, grossa, com a barba por fazer. Eles escapam, mas serve de presságio - coisa pior deve surgir no horizonte.
Enfim chegam ao destino. Cenário deslumbrante, mata selvagem cercada pelas bordas da gigantesca cratera que dá nome ao parque. Depois de um dia de passeios, porém, o carro velho que eles adquiriram não pega mais. No meio do nada, aparece um morador do local (interpretado pelo veterano John Jarratt, já escalado para o filme novo de Tarantino / Rodriguez) para ajudar - ou seria para atrapalhar?
Construção do mito
Em entrevistas, McLean, natural da moderna Melbourne, diz que não era sua intenção criar "o próximo ícone entre os vilões do horror", e sim, antes de mais nada, localizar seu maníaco muito bem geograficamente, para torná-lo mais real. De fato, a ambientação contribui enormemente para delinear não só a psicologia do personagem como toda a atmosfera de opressão.
Uma maneira de construir o clima, teoricamente simples mas de execução difícil, é dilatar o tempo. Nos terrores hollywoodianos, por mais longa que seja a viagem, na tela ela dura poucos minutos. Identificamo-nos superficialmente com o que vivem os personagens. Aqui todas as idas e vindas do trio de mochileiros, sentados no carro, tomam quase dois terços do filme. Assim dividimos com eles, na medida do possível, por exemplo, a experiência de um reboque no breu da noite, por um tempo que nos parece infinito, sem saber para onde ele levará. Isso é suspense.
Greg McLean pintava antes de virar cineasta. Pode ser que seu senso de espaço e enquadramento venha daí. Ele tem especial sucesso em contrastar a beleza da paisagem, com nascentes, revoadas e poentes, com a claustrofobia da situação em que se metem os turistas. Wolf Creek é um terror - visualmente sanguinolento, vale avisar - essencialmente existencial. É a geografia, de fato, que delinea os personagens. Mas o diretor poderia ter deixado algumas perguntas no ar. As cenas que mostram a "galeria" do assassino e explicam seu passado, seus atos, seus métodos, são absolutamente desnecessárias. Isso é mal de terror barato hollywoodiano. O que importa é botar medo, não justificá-los.
E é parte crucial do exercício de aterrorizar conseguir criar um personagem à altura do medo. Isso tem a ver com mitificação. Uma tomada, que enquadra o carro do maníaco por baixo, acelerando no meio da estrada, remete a outro australiano, Mad Max. O plano final, com a sombra do personagem caminhando em direção ao sol, lembra os renegados de John Wayne dos filmes de John Ford. Tudo isso não é por acaso. O tratamento engrandecedor, típico da construção de mitos, tende a criar ao redor do homem a aura de indecifrável - é a maneira de torná-lo imortal.
Daria até para concluir que McLean não está do lado das vítimas, essa gente festeira e lasciva da metrópole, mas a favor de seu Dundee primal. Mas isso já é outro papo.
Ano: 2005
País: Austrália
Classificação: 16 anos
Duração: 99 min
Direção: Greg Mclean
Elenco: John Jarratt, Cassandra Magrath, Kestie Morassi, Nathan Phillips, Andy McPhee, Darren Humphreys