Séries e TV

Crítica

Sharp Objects

Atuações brilhantes e personagens perversas redimem engate tardio de Sharp Objects

27.08.2018, às 17H26.
Atualizada em 03.09.2018, ÀS 09H03

Existe um brilho único nos romances de Gillian Flynn. A escritora de Objetos Cortantes e Garota Exemplar tem um olhar além do empoderamento, visto cada vez mais em Hollywood. Sempre centralizando suas histórias no psicológico feminino, Flynn prefere apresentar o leitor ao outro lado da mente da mulher, não menos importante. Seu interesse pela natureza sombria e perversa do feminino é um contraponto ao embelezamento tanto de donzelas quanto de heroínas. Ela quer enfatizar o fato raramente explicitado de que, quando se dá profundidade às personagens, há muito mais elementos que constituem suas mentes.

Sharp Objects Crítica

Sharp Objects Crítica
Sharp Objects/HBO/Divulgação

Esta é a principal essência de Sharp Objects, adaptação pela HBO da obra de Flynn com o diretor Jean Marc-Vallée (Big Little Lies). A série acompanha a jornada de Camille Preaker, repórter que retorna à sua cidade natal de Wind Gap para investigar o assassinato de duas adolescentes. A transtornada jornalista, que abusa de álcool e vive com o resultado de um passado intenso de auto-mutilação, é forçada a conviver novamente com sua família - o desenvolvimento da busca pela verdade acaba, inevitavelmente, obrigando-a a encarar realidades bizarras de sua meia-irmã, Amma, e sua mãe, Adora Crellin. Apesar de todos os personagens da cidade se mostrarem sinistros, é no comportamento macabro das mulheres que a história tem seu ponto forte, e é neste trio que a HBO triunfa na produção: poucas coisas na adaptação brilham tão forte quanto as performances de Amy Adams, Patricia Clarkson e da novata Eliza Scanlen.

Sharp Objects demora em torno de quatro a cinco episódios para tomar fôlego. Seu começo lento, que pode afastar parte do público, é em parte uma escolha deliberada de Vallé, que brinca com a memória traumática e o alcoolismo de Camille, montando uma narrativa que retoma cenas de infância e intercala com alucinações da personagem. Essa escolha se mostra inconsistente quando a série acelera. Nos três últimos episódios, Sharp Objects se esquece de seu ritmo característico e uma intensidade de acontecimentos na investigação se alinham e finalmente parecem se encaminhar para resolução e clímax. Apesar de solucionar o passo já desgastado da produção, a alteração na cadência, no fim das contas, soa como falha. Do meio para o fim, não há mais longas tomadas de Amma andando de patins, Adora dançando e, principalmente, Camille bebendo, atitude que era sua maior característica até então. A mudança resulta em um desequilíbrio em Sharp Objects, mas vem como um alívio ao telespectador: os três últimos episódios são uma recompensa aos pacientes.  

A ideia geral do início de Sharp Objects é que a produção busca focar mais no psicológico de seus personagens do que na evidência de suas ações concretas e, de certo modo, a série faz isso muito bem. Em seus oito episódios, o chefe da polícia Bill Vickery (Matt Craven) tem poucos minutos de tela. Ele aparece esporadicamente, em sua casa ou no departamento policial, e em pequenas cenas entrecortadas na própria residência de Adora. Mas seus poucos momentos são cruciais e suficientes para entendê-lo como um personagem que é fruto de Wind Gap; simples, conformado e descrente na maldade das mulheres. Do mesmo modo, a série não gasta tempo em explicitar ao telespectador que um caso secreto existe entre Vickery e Adora. Há apenas indícios em um comportamento dissimulado e poucas palavras entre os dois. Neste sentido, Sharp Objects tem uma qualidade respeitável e também rara; nunca trata seu telespectador como idiota. Assim como Camille e os outros residentes de Wind Gap, o público sabe apenas o que a cidade quer mostrar e trabalha com isso para entender cada um de seus comportamentos e desvendar seus enigmas. 

Wind Gap é, possivelmente, o maior personagem de Sharp Objects. Por trás de cada um de seus residentes, o abafado ambiente da cidade, representado principalmente pelo calor e o abatedouro de porco, é o elemento fundamental de seus comportamentos. No quinto episódio, somos introduzidos a uma das características mais desconcertantes do lugar, na comemoração de Calhoun Day. A festa celebra a resistência de uma esposa de soldado confederado, que passa por diversos abusos e estupros para manter os segredos da cidade. Ainda mais bizarro, a celebração vem através de uma recriação da cena da resistência de Mary Calhoun, e toda a performance é feita pelos jovens (com, claro, Amma no papel principal). Quando analisada, seria difícil que alguém sairia normal de uma cidade que cheira a carnificina e celebra um estupro. No fim das contas, Wind Gap constrói e dá sentido a cada um dos absurdos de seus residentes.

A série tem um bom material na fonte para desfrutar. Quando toma fôlego, a história de Camille e de Wind Gap se torna ainda mais envolvente do que no livro de Flynn. A maneira em que a produção constrói a jornada da problemática repórter não somente acrescenta elementos valiosos ao seu passado – como sua passagem pela reabilitação – como a performance de Amy Adams transmite intensamente sua dolorosa realidade. A química entre Adams e Clarkson funciona perfeitamente, e quando as duas finalmente se relacionam de modo mais íntimo, a série encontra seu clímax. Infelizmente, a adaptação abriu mão de um dos elementos perturbadores do romance ao alterar a idade de Amma, mas o resultado não é de todo ruim. No livro, a garota tem 13 anos, o que torna todas as suas ações muito mais impactantes. Assim, enquanto em Objetos Cortantes o perturbador era uma criança que se vestia de forma sexualizada, em Sharp Objects é o contrário que chama atenção. A imagem bizarra é ver uma adolescente de aparentes 16 anos se vestir como uma boneca.

Ainda em relação ao livro, Sharp Objects encontra seu auge no seu último capítulo. O sacrifício e redenção de Camille, a doença de Adora e o transtorno de comportamentos de Amma estão compactados perfeitamente em um único capítulo. O fato de que ele se passa grande parte na residência Crellin cria uma atmosfera sufocante que a série parecia querer transmitir, mas não havia conseguido até então. Ainda, a decisão de Jean Marc-Valleé de finalizar a trama antes do livro, abruptamente e quase que em um cliffhanger, foi um grande acerto. A última cena da série é provavelmente a melhor. Sharp Objects fecha como uma produção que cresce aos poucos e instiga tardiamente. Felizmente, é capaz de segurar o telespectador pelas performances e pela força de seus personagens, porque quando engata, a série recompensa.

Nota do Crítico
Ótimo

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.