Desde a sua estreia, A Casa do Dragão tinha um desafio em mãos: adaptar um livro que trazia várias versões de um mesmo acontecimento, e com narradores não confiáveis. Isso porque Fogo & Sangue, a obra que conta em detalhes a história dos anos de reinado Targaryen em Westeros, foi escrito como um relato histórico, um material que existiria dentro do universo criado por George R. R. Martin - e, portanto, político em sua essência.
O “autor” do livro é o Arquimestre Gyldain da Cidadela de Vilavelha, e o seu trabalho no volume foi compilar os relatos de várias fontes diferentes: partes do livro vêm do Grande Meistre Munkun, autor de A História Verdadeira; outras, do septão Eustace, que serviu no septo real durante o reinado de Viserys e a Dança dos Dragões; ainda outras, de Cogumelo, o bobo da corte que serviu de Viserys I a Aegon III. Além disso, é comum trechos que comunicam mensagens como “as fontes variam”, “dizem que” ou “relatos da época”, por exemplo. Ou seja, várias versões da mesma história são contadas no livro.
Outro fator que merece ser mencionado é que, por se tratar de uma “fonte oficial”, o relato não é totalmente confiável. Isso porque a história pode ser manipulada para favorecer um lado ou um indivíduo, por exemplo, e pintar a imagem que melhor servir ao propósito do autor. E, mais importante, detalhes privados e segredos podem ficar de fora.
Toda essa estrutura narrativa levanta desafios para A Casa do Dragão, adicionando camadas novas em histórias já impregnadas de jogos de poder, personagens ambíguos e profundamente humanos. De certa forma, isso torna as coisas em Fogo & Sangue mais interessantes: ao deixar possibilidades abertas, o livro convida o leitor a imaginar qual seria a verdade. E, sejamos honestos, muitas vezes é melhor trabalhar com o mistério e construir essa mitologia do que entregar os segredos revelados.
Quando a HBO decidiu adaptar esse material, uma escolha precisou ser feita: ou essas ambiguidades seriam mantidas, e mais de uma opção ia ser apresentada ao público (menos provável e mais difícil de executar); ou uma versão seria escolhida como oficial e retratada na série. A segunda opção é a mais viável em termos de formato, e até mesmo preferível quando pensamos em uma série de TV e suas particularidades narrativas. Afinal, só as tramas de Westeros com seus muitos personagens já dão trabalho o suficiente tanto para a equipe quanto para o público acompanhar.
Porém, isso não queria dizer que a adaptação precisava ser exaustivamente didática - ela poderia muito bem trabalhar com sutilezas e subtextos para trazer as respostas necessárias sem perder as camadas narrativas advindas do mistério e das possibilidades. Uma situação em específico exemplifica as escolhas equivocadas da série nesse aspecto: a intencionalidade da morte de Lucerys Velaryon. Afinal, Aemond matou o garoto de propósito, como uma vingança? Ou ele perdeu o controle de Vhagar? Foi um acidente?
No caso de A Casa do Dragão, a cena da morte de Lucerys em Ponta Tempestade por si só já foi o suficiente para definir a versão que a série quer eternizar como “oficial”, mas mantendo as sutilezas nas facetas dos personagens. Fica subentendido que a morte foi, sim, acidental, e o próprio Aemond parece ficar assustado com o acontecido - mas ele assume uma postura de agente ativo no acontecido, de forma que não perde a imagem de poder que tanto preza.
Assim, a cena (e sua repercussão) imediata foi perfeita no sentido de fazer escolhas sem eliminar as camadas - é mais interessante deixar ocorridos emblemáticos abertos para interpretações, desde que bem resolvidos no roteiro e executados pelos atores. E Ewan Mitchell entrega todo o necessário em cena, vale ressaltar.
Essa resolução, no entanto, foi destruída nos primeiros episódios da segunda temporada, quando acontece a infeliz cena de Aemond no bordel. Lá, ele diz com todas as letras que sim, foi um acidente. Em primeiro lugar, essa colocação é desnecessária: qualquer espectador atento já havia captado a intenção do roteiro ao retratar sua reação assustada após o ataque de Vhagar. Em segundo, por que eliminar as possibilidades interpretativas?
A série já mostrou que é capaz de dosar com bastante eficiência as suas escolhas, as informações que entram ou ficam subentendidas. Um exemplo perfeito de evento com várias versões no livro que ganha uma resposta definitiva na série é a relação de Rhaenyra com Sor Criston Cole - em Fogo & Sangue, várias versões são levantadas do porquê a proximidade dos dois se transformou em tanto ódio do lado do cavaleiro, enquanto a série deixa claro que Sor Criston era apaixonado pela princesa e ficou magoado após ela não largar toda a sua vida e herança para viver ao seu lado.
Outro exemplo de boa adaptação é quando a série encontra brechas em Fogo & Sangue e usa de sua estrutura aberta para criar uma nova versão, como é o caso da “morte” de Sor Laenor Velaryon. Na série, o cânone oficial é mantido, mas é revelado que o marido de Rhaenyra forjou sua morte (e fica subentendido que contou com a ajuda de Rhaenyra e Daemon), fugindo de Westeros. É bastante claro, para o espectador atento, como a história se desenrolou, sendo dispensável uma explicação didática sobre todo o episódio - o espaço para a imaginação preencher as lacunas é uma dádiva da narrativa.
Assim, a lição que fica para A Casa do Dragão é que nem todas as respostas precisam ser dadas. Durante a primeira temporada, a produção parecia ter entendido muito bem como equilibrar os mistérios com suas soluções, mas o excesso de explicações desnecessárias - um desserviço para a série - ameaça a nova leva de episódios. Resta a nós, amantes do universo de Westeros, esperar que as complexidades não sejam eliminadas em prol de contar uma história às claras.