[Feira de prazeres]  

Todos sabem que New York é a cidade dos extremos. No inverno mais quente desde os anos 30 ocorreu a maior nevasca no mesmo período desde a década de 1940. Efeito estufa? Não, o nova-iorquino está imune a estas coisinhas da natureza. Talvez tenha sido o choque térmico provocado pela estonteante e mais variada oferta cultural do planeta. Madonna disse que brincava com a letra, mas como canta em seu último CD, "nenhuma cidade me faz mais feliz" (em I love New York), mas quem a conhece sabe que ela diz o que realmente acredita. Mesmo após os históricos ataques, New York ainda existe para divertir. Podem comparar com Londres, Paris ou Berlim, mas que outra cidade do mundo teria na mesma semana:

•  megafesta com show de uma das maiores cantoras americanas;
•  turnê da melhor orquestra do planeta;

•  o mais perfeito pianista da atualidade;

•  o maestro mais badalado;

•  uma exposição com cadáveres;

•  outra que cutuca os crentes de todas as religiões; e, de quebra,

•  uma grande homenagem a um dos maiores ícones pornôs da história?

[Bárbara/Bibi]  

Bárbara Cook é a Bibi Ferreira dos Estados Unidos. Ambas são garotas na década dos oitenta anos. Tal qual nossa atriz/cantora, Cook dedicou sua vida ao teatro musical na Broadway, participou das montagens originais desde a década de 1940! Há vinte anos se dedica ao cabaré de hotéis, um estilo elegante promovido pelos bares dos mais finos hotéis e que infelizmente não vingou no Brasil.

Bárbara teve uma digna homenagem no reservadíssimo Metropolitan Opera House. Esta casa recebeu pela primeira vez uma cantora popular americana em seu palco sagrado, onde somente pisam bailarinos e cantores líricos. Em uma única noite celebrou sua carreira para um público de 4 mil pessoas, em que não faltaram amigos, celebridades artísticas e cantores que vieram ao palco para duetos. Cook pode não ser tão popular atualmente. Seus discos não vendem tanto, mas lá existe a memória cultural que evitou o precoce encerramento de sua carreira. Assim como Bibi Ferreira, sua voz melhora com a idade. Esperem o disco desta homenagem (importado, é lógico) e, enquanto não vem, vá comprar o novo disco de Bibi. Mais uma obra da gravadora Biscoito Fino. Fugindo do óbvio e depois de extensa pesquisa feita pela própria Bibi em terras argentinas - com o finíssimo piano de Miguel Proença - ao escutar Tango você nunca mais conseguirá assistir à enésima versão de Uma noite em Buenos Aires.

[O topo do mundo]   

Com sol, neve, frio ou calor é imperdível. The top the rock é o novo marco da cidade. O terraço do mais alto prédio do Rockfeller Center (http://www.topoftherocknyc.com/ - ótimo site) reabriu para provocar o finado World Trade Center e o impávido Empire State. É a melhor vista de New York. Bem central, com vista total em 360 graus e aberta até a noite, o observatório tem o primeiro andar envidraçado, o segundo andar parcialmente protegido e o terceiro andar por seu risco e conta: a céu aberto. Não se assuste, é impossível pular, mas não de surpreender-se ao se perceber abraçado pela mais estonteante vista dos mais variados edifícios, que cada vez mais impressionam pela ousadia, beleza arquitetônica e imponência.

[Filarmonia e outros sons]  

Impossível escolher sem perder. A Filarmônica de Berlim (sob a direção de Sir Simon Rattle) no Carnegie Hall, a Orquestra Revolucionária e Romântica (com o respeitadíssimo John Eliot Gardiner) no Lincoln Center, o grande pianista norueguês Leif Ove Andsnes, óperas todos os dias no Metropolitan Opera House e a remontagem dos melhores ballets de Balanchine e Jerome Robbins no New York City State Theatre.

Quase todos os programas homenageando Mozart, pelos 250 anos de nascimento. De quebra, as melhores casas de jazz do mundo, sem falar nas infinitas opções de teatro. Isto é notícia na cidade, pelo menos para quem se interessa pela arte. Aqui, na Big apple, poucos se importam com o dia-a-dia dos políticos de Washington. Enquanto em terra brasilis ficamos ligados em CPIs que não dão em nada e o cotidiano de anencéfalos, que levam a maior parte dos impostos que pagamos para distribuir a familiares e amigos.

O mundo escolheu Nova York para sua capital da cultura e a cidade aceita este mandato. Não é questão de esnobismo, mas de quem pode e sustenta o debate cultural. Em época de dólar baixo, não resista. Evite o câncer de pele apanhado em praias mal-cuidadas e invista em uma semaninha do spa alucinante desta cidade.

[Mortos ao vivo]   

Bodies: the exhibition (http://www.bodiestheexhibition.com/) veio para escandalizar os hipócritas e para deslumbrar os de mente aberta. Desdenhada por museus, a mostra patrocinada por americanos - mas com corpos de chineses - está no pavilhão de exposições do The South Street Seaport, uma espécie de shopping para turistas, em um dos mais agradáveis pontos de New York. Lição de anatomia, arte ou marketing de uma vida saudável? Nada pode ser definitivo em primeiro olhar. Há um caráter didático na tentativa de exibir o corpo humano em sua completude, mas a preocupação estética é evidente, notável e decididamente tudo é bonito. Vermelho e azul predominam no design feito de carne, vasos e luzes diretas. São 22 corpos completos e 260 órgãos. Algumas peças são mostradas como vitrine de uma joalheria. O morto saudável é apresentado como atleta; as peças com câncer, obesidade ou outras patologias - como pulmões de fumantes - são escurecidos, assustadores, invocando as representações semelhantes às que vemos em filmes de terror. Curiosamente a exposição é indicada para crianças pelos especialistas de lá. Isto pode se tornar bom tema de debate: a moral dá conta deste olhar mais do que curioso dirigido aos mortos? Há morbidez no reconhecimento de que o morto observado felizmente não sou eu? Como algo tão chocante pode ser tão belo. Com a palavra, Leonardo da Vinci.

[Natureza viva]    

Darwin é mais do que uma homenagem ao pai da evolução. A exibição no Museu de História Natural foi badalada pela mídia, mas é decepcionante para os padrões desta instituição. Pequena, mistura alhos com bugalhos, quase amontoando uma iguana - em simulação de ambiente tropical em um pequeno aquário - com a sala de estudos de Charles Darwin (pronuncia correta: Daruin). Apertadíssima e calorenta, a mostra é praticamente recheada por painéis com textos e fotografias da grande viagem do cientista, ou de imagens de sua família ou casa. (http://www.amnh.org/exhibitions/darwin/)

Há um cuidado elegante em não provocar os religiosos e sua teoria de design inteligente, em que uma força criadora superior (Deus) teria bolado a complexidade da natureza, especialmente o ser humano. A discussão não precisa ser levada para a academia x igreja. Darwin, propriamente fizera sua teoria da evolução em meio a crises de um indivíduo atormentado pela dúvida quanto ao verdadeiro responsável pela criação. Com rígida educação religiosa cristã, perdeu a fé quando se deparou com um mundo de realidade bastante diferente de sua pacata existência. Depois de sua viagem por quase 5 anos, rodando o planeta, não acreditava mais no que os religiosos pregavam na época. Curiosamente buscou em um casamento - de conveniência - o sossego para poder entender em sua casa no campo, o que colecionara durante a viagem ao redor do mundo: casou com uma carola e teve uma penca de filhos. O filósofo Daniel Dennett, provavelmente o Bin Laden do darwinismo não tem mais medo de dizer que Deus não existe e que a devoção religiosa é uma função biológica. Dennett, em seu novo livro (Breaking the spell: religion as a natural phenomenon ou Quebrando o feitiço: a religião como um fenômeno natural) afirma que a questão religiosa já não existe mais para a ciência como alternativa.  

[Natureza morta]   

Peter Berlin esquentou o inverno nova-iorquino com um passado sobre si que só pode retornar com a arte. Conhecido como recluso, o mais famoso ex-porn star gay foi homenageado em documentário (That man, exibido na mostra Mix Brasil do ano passado - (http://www.thatmanpeterberlin.com/), exposições com fotos (http://www.leslielohman.org/), festas nas mais variadas casas noturnas e ampla exposição na mídia. Os jornais exageram: anunciando que aos 63 anos ainda estava em forma, quem o viu encontrou um sujeito envelhecido, magro e com uma calvície insipiente, apesar de manter longos os cabelos loiros. Nada do antigo glamour. Peter Berlin (na verdade Peter Burian) enlouqueceu os mais renomados artistas plásticos dos anos 70, incluindo Robert Mapplethorpe, Andy Warhol, Jean-Paul Gaultier e o estilo do desenhista Tom of Finland. Foi ele quem inventou o modelito apertado para os gays, introdutor das roupas colantes com acessórios de policiais que povoaram e ainda fazem o imaginário erótico masculino e não só de gays. Berlin deveria ter ficado em São Francisco, onde mora e passa o tempo pintando quadros de suas antigas fotografias, em eterna auto-adoração. O agito que provocou, um verdadeiro agito cultural, mostra como a pornografia foi alçada ao status de arte.

[Natureza das paixões]   

Brokeback mountain é um filme evento. Incomoda platéias conservadoras que têm conferido o filme com a badalação pelo Oscar. Sua temática já aparecera em alguns filmes (geralmente independentes) e em zilhões de sitcoms. A questão é que nunca o amor homossexual foi mostrado entre dois homens que não fizessem parte de uma cultura urbana. O filme não é sobre preconceitos, não é um melodrama sobre um amor proibido. É um melodrama sobre o arrependimento tardio de uma escolha que não tem volta. Assim como em Perdas e danos, o final que evoca a contemplação (lembremos de Platão) trata do objeto amoroso levado ao altar religioso, uma imagem de adoração, de completude eterna, de cristalização do tempo. O modelo para a paixão vem do amor. A melhor paixão é a morta, pelo menos segundo os poetas.

[Adeus à hipocrisia]   

Os dois amantes que pastoreiam ovelhas no começo do inverno de 1963 deixam claras suas opções, opostas desde o início, do relacionamento que durará 20 anos. Um topa a vida conjunta, o outro se contenta com os encontros combinados previamente. Nenhum dos dois tem pudores com as famílias. "Vou pescar com meu amigo" e bye bye para as respectivas esposas.

Terry Eagleton em Depois da teoria (Ed. Civilização Brasileira) acredita que os estudos culturais modernos têm desdenhado a revolução sexual que toma conta dos jovens. Para Eagleton, o que caracteriza a modernidade em que pesa a atividade sexual é o fim da hipocrisia nesta área, a aceitação da diversidade. É o que Pedro Almodóvar mostra há anos.

Eventos como o de Peter Berlin e Brokeback mountain utilizam a fachada extrema da sexualidade no imaginário popular, pois os gays são tidos como aqueles que praticam mais o sexo. É a ponta do iceberg. O número crescente de heterossexuais que freqüentam as casas noturnas gays mostra que o mundo pode estar menos dividido, menos hipócrita.

[Paixões insuportáveis]   

Além de em Brokeback mountain, pelo menos em dois outros filmes da mesma safra, a paixão é mostrada como algo insuportável, em que o desejo de estar junto se transforma em pesadelo no qual o único sossego é a aniquilação. É o que também assistimos em Match point - Ponto final (de Woody Allen) e Capote (sobre a pesquisa do escritor Truman Capote para a realização de sua obra-prima À sangue frio). Em Brokeback é claro que para um dos parceiros (Ennis - Heath Ledger) a administração da falta do amado é dolorosa. Em cena rara do cinema, o adeus se transforma em náusea e impulso de auto-aniquilação. Fica claro que não há palavras para expressar o pior mal-estar de uma discussão entre amantes, seguida de inexorável separação.

A neurociência busca dar suas explicações e afirma: paixões duram no máximo dois anos!? Ou seja, o organismo dá um tempo para que o desejo seja satisfeito. O resto é sintoma de doença. Amantes invariavelmente se cobram, pois amantes fazem rotina. Se for boa, vira amor. Amor tem de ser prazer com a convivência. Para os personagens principais de Brokeback, Match point e Capote a paixão se transforma em tormento e o que eles mais querem é se livrar disto. A arte ainda imita a vida ou a ironia atual das paixões não permite mais o sofrimento que a paixão traz ou será o sofrimento que traz a paixão?

‘Por que açoitas essa pobre rameira?
Vira contra ti próprio essa chibata. Estás ardendo
de desejos de com ela realizares o ato porque a castigas!


O Rei Lear
Shakespeare