Seja com um especialista ranzinza que sofre de dores constantes ou com um autista genial que tenta um trabalho tão distante do que a sociedade imaginaria que ele fosse capaz de fazer, o trabalho de David Shore é falar de inaptidão social. É disso que ele gosta, é isso que mantém – em suas duas grandes séries de sucesso – o tom de suas narrativas. Tanto em House quanto em The Good Doctor, o que permeia a intensa presença da natureza procedural da série é a imprevisibilidade de seus protagonistas. Sempre voltamos a isso quando o assunto é The Good Doctor, porque conforme os anos passam, mais esse “estilo” de Shore vai se tornando uma reprodução constante e descarada de seus maneirismos criativos, que, nesse caso, não são exatamente parte de um elogio.
Começos e finais de temporada são emblemáticos para qualquer série. Enquanto finais de temporada são cheios de viradas e resoluções, os começos de temporada podem ser tanto uma parte desse processo, quanto um marco de recomeços. Depois de meses afastados de seu programa favorito, os fãs sempre esperam que o primeiro episódio do ano traga novas possibilidades e um tom especialmente dramático, algo que o diferencie dos episódios regulares. Pode parecer que essa caracterização não é tão importante assim, mas a atmosfera estabelecida por esses “episódios especiais” pode ser responsável por boa parte do impulso em continuar seguindo em frente com a produção. Se tem uma coisa em que The Good Doctor sempre falha é em sair do lugar comum, abandonar a zona de conforto, ser nada menos que morna – e muitas vezes quase fria.
Desde a segunda temporada os conflitos vividos por Shaun (Freddie Highmore) foram perdendo o centro das atenções. Nos episódios do primeiro ano todas as tensões que resultavam do fato do personagem ser um autista foram usadas e resolvidas rapidamente. Em meados do segundo ano, o residente já tinha alcançado seu lugar, respeito perante os colegas e o direito de estar certo em suas inesperadas teorias. É evidente que em um ou outro momento as limitações surgem e o personagem tem que lidar com aquela realidade. Mas, a sensação é de que a progressão das relações entre eles foram entrando num campo confortável, o que acabou resultando num quadro ainda mais entediante: tudo em The Good Doctor parece ajustado e seguro, o que não deixa de ser uma ironia com seu título. Shaun é um bom doutor, infalível, amado, admirado e ajustado. Sim, ajustado, porque até sua dificuldade em ter um relacionamento amoroso está a um passo de ser vencida.
The Boring Doctor
A terceira temporada começa com mudanças, é claro, ainda que mínimas. E a palavra “mínima” aqui é relevante, porque quando o episódio termina, ele não soa como o episódio de estreia de uma temporada, e sim um episódio do meio do ano, um daqueles que podem estar lá na semana sete ou oito, já que não oferece nenhuma verdadeira emoção sobre nada. Shaun está tentando um primeiro encontro com Carly (Jasika Nicole) e o roteiro vai com calma. Para a maioria das pessoas, o investimento no começo de uma relação é sempre tenso, cheio de pressões e vontade de fazer dar certo. É exaustivo. Mas, para Shaun é exaustivo alguns graus acima. Nisso o episódio acerta, colocando o público dentro dessa perspectiva difícil, fazendo com que ele queira se afastar de todo o estresse causado pela ideia, mas sinalizando que o impulso do desejo falará mais alto.
O “desastre” do título do episódio poderia sinalizar alguma turbulência real nos eventos da estreia, mas ele se relaciona muito mais com o infame primeiro encontro de Shaun. Inclusive, todas as mudanças providenciadas para o hospital foram superficiais, sempre atreladas à dança das cadeiras na diretoria e ao espaço que os residentes podem ter ou não nas ações cirúrgicas. Trouxeram Glassman (Richard Schiff) de volta para o comando e transformaram Andrews (Hill Harper) em um atendente. Além disso, os residentes de terceiro ano (o ano exato de Shaun) agora poderão fazer operações de rotina sozinhos. E aí estão três pequenas transformações que dificilmente terão um grande impacto futuro, não por serem pequenas, mas porque a série não consegue esticar a linha de tensões o suficiente. Nada em The Good Doctor parece realmente dramático, perigoso.
Por fim, nem mesmo os aspectos procedurais chamam tanto a atenção. Os casos da semana percorrem o episódio com a mesma morosidade que todos os outros núcleos. O texto se esforça, tenta as pontes, as correlações (nessa estreia um casal de jovens noivos está em contraponto com um casal maduro)... Mas, o resultado ainda é pífio. Curiosamente, The Good Doctor segue com sua audiência notória, sua receptividade bastante positiva, afastando a ideia de que o público já se cansou de séries quadradas e inofensivas. Apesar de todos esses aspectos questionáveis da produção, ela é mais fria que errada. Ela pode te distrair numa noite em que você não quer complexidade, mas jamais vai te fazer vibrar na poltrona. David Shore não criou uma série inesquecível, ele criou uma série só confortável.