Séries e TV

Artigo

Esta não é a Halo que você conhece. Ainda bem.

Série mostra por que adaptações devem ter liberdade para contar suas próprias histórias

Omelete
4 min de leitura
02.04.2022, às 17H27.

Tal qual flocos de neve ou personagens customizáveis de RPG, não existem duas histórias completamente idênticas no planeta. Contar histórias é um ato pessoal demais, e maleável demais, para isso ser possível. Mas vamos fingir por um segundo que seja: qual seria o ponto de ver duas versões idênticas da mesma história? O transporte de uma mídia para a outra faz tanta diferença assim para o nosso imaginário? A imagem que conjuramos com a nossa mente ao ler um livro, ou a imagem conjurada pelos pixels na tela do videogame, é diferente o bastante da carne e osso do ator capturado pela câmera?

Halo entende que a resposta para essas perguntas é, em última análise, não. Com certeza há um público que pagaria para ver o seu game favorito traduzido para live-action ao pé da letra (como quer que isso fosse funcionar no caso de Halo), mas há um público muito maior interessado em ouvir uma história única, pensada integralmente para a plataforma em que nos é apresentada, dentro deste mesmo universo. Porque o sucesso acachapante de Halo não é acidental: este é mesmo um mundo envolvente, rico em possibilidades subtextuais, e seria uma pena se a fidelidade ao original deixasse os artistas da série de mãos atadas para explorar algumas delas.

Na série, conhecemos primeiro a jovem Ha Kwan (Ha Yerin), que mora em um dos planetas controlados pela UNSC (Comandos Espaciais das Nações Unidas, em tradução livre), uma organização autoritária e militarizada em perpétua guerra com a sociedade alienígena conhecida como Covenant. Quando o vilarejo de Kwan é atacado violentamente pelos tais alienígenas, a UNSC manda o seu grupo de elite ao resgate: os Spartans, liderados por Master Chief (Pablo Schreiber), são humanos modificados e treinados para serem soldados perfeitos e imunes a emoções.

Ha Yerin como Ha Kwan em cena de Halo (Reprodução)

Os Spartans vencem a batalha, mas Kwan é a única sobrevivente de seu vilarejo, e Chief se vê lidando com pensamentos e impulsos estranhos após tocar no artefato que o Covenant estava escavando no planeta. Dizer muito mais do que isso seria estragar as boas surpresas que Halo guarda pelo caminho, mas basta apontar para o que já foi revelado antes mesmo da estreia: ao contrário do que acontece nos jogos, Master Chief tira o seu capacete (e, inclusive, o resto da armadura) na série. É uma decisão simbólica do divórcio entre o que veremos na TV e o material original, e também um dos maiores acertos dos primeiros episódios da produção.

Primeiro porque retirar o capacete permite que a série se aproveite dos amplos talentos de Pablo Schreiber. Como tem mostrado nos últimos anos em projetos de TV tão diversos quanto Orange is the New Black e Deuses Americanos, o ator canadense é dono de uma fisicalidade impressionante, mas também de um ouvido afinadíssimo às entrelinhas morais e sentimentais dos diálogos de seus personagens, frequentemente estoicos ou emocionalmente reprimidos. É uma escalação perfeita para a jornada que Halo, a série, claramente pretende desenhar para o seu Master Chief: a de um homem redescobrindo o que é ser humano.

E é um testamento à coragem de Halo que, para contar essa história, ela não hesite em passear delicadamente por implicações queer (atenção à história envolvendo o personagem de Bookem Woodbine, no segundo episódio), ou em escancarar uma crítica anti-militarista e anti-colonialista que só emergiu nos videogames - e muito mais timidamente - em edições recentes. Os showrunners Steven Kane e Kylie Killen, enfim, parecem determinados a criar a versão mais contemporânea possível de Halo, mais liberta de amarras narrativas, mais capaz de abraçar a amplitude temática do universo apresentado pela franquia.

Essa abertura, essa boa vontade textual, é em muitos sentidos a grande qualidade redentora da série. Ao menos nos dois primeiros capítulos, a direção de Otto Bathurst (Peaky Blinders, Robin Hood: A Origem) não faz grandes pulos estéticos e não empolga nas cenas de ação, por mais super produzidas que elas sejam; o design de produção de Sophie Becher (Marte, E Não Sobrou Nenhum) faz um trabalho apenas competente de copiar os ambientes dos games; e o elenco coadjuvante pouco se esforça para estender o interesse do espectador além do Master Chief de Schreiber.

No fim das contas, a Halo da TV vive e morre por sua história, por suas emoções. De uma franquia famosamente metódica em sua construção mitológica, mas que pouco investia nos relacionamentos entre seus personagens, nasceu uma série caótica como produto de ação e ficção científica, mas na qual o espectador deve se agarrar mesmo assim, pela virtude dos seres humanos em seu centro. Ironia das mais pesadas, e das mais interessantes, dos últimos tempos na cultura pop.

Halo estreia no serviço de streaming Paramount+ em 24 de março, com o seu primeiro episódio. Capítulos seguintes serão lançados semanalmente, sempre às quintas-feiras.

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