Harry Potter é uma obra incrível. A saga em sete livros sobre o menino órfão e bruxo que venceu o Lord das Trevas é cheia de simbolismos e mensagens importantes. Ao longo de suas páginas, J.K. Rowling escreveu sobre preconceitos que existem no mundo bruxo em relação aos nascidos trouxas, mostrou como a comunidade mágica é intolerante com outros seres, como gigantes e duendes, e colocou em diálogos falas importantes que ressoam com os fãs até hoje. No entanto, um olhar mais atento mostra como a obra tem alguns pontos que merecem discussão e se relacionam com as falas da autora nas redes sociais.
Recentemente, J.K. Rowling foi acusada de transfobia no Twitter ao comentar sobre uma matéria que citava “pessoas que menstruam”. Rowling afirmou que “tenho certeza que costumava existir uma palavra para essas pessoas”, indicando que a matéria deveria ter escrito mulheres. Só que definir que apenas mulheres menstruam deixa de fora os homens trans que também menstruam e exclui mulheres que, por algum motivo, não menstruam mais. Após o comentário, a autora recebeu diversas críticas, incluindo do protagonista da saga bruxa, Daniel Radcliffe, que afirmou que “mulheres trans são mulheres”.
Em sua defesa, Rowling afirmou que ama as pessoas trans e já pesquisou muito sobre o tema, mas que, para ela, “apagar o conceito de sexo remove a capacidade de muitos discutirem suas vidas de modo significativo”. A autora disse ainda que está ao lado das pessoas discriminadas por serem trans, ao mesmo tempo em que sua vida “foi moldada por ser mulher”. Unindo todas essas falas, fica claro que J.K. Rowling baseia seus conceitos de sexo e gênero em suas experiências de vida, sem necessariamente olhar além para pessoas que vivem de forma diferente. Ela afirma que estudou bastante sobre o tema, mas estudar ou ter amigos da comunidade queer não necessariamente cria a empatia necessária. É preciso ter a mente aberta para entender conceitos que você não viveu na pele, mas são a realidade de muitas pessoas.
O mundo bruxo
Rowling baseia as falas em suas experiências de vida e faz o mesmo com a franquia Harry Potter. Na escola de magia e bruxaria de Hogwarts, os alunos são selecionados para quatro casas diferentes, de acordo com suas habilidades (Grifinória, Sonserina, Lufa-Lufa e Corvinal) e, dentro dessas casas, há os dormitórios para meninos e meninas. Em nenhum ponto da história é discutido se algum aluno se sentiu desconfortável com a divisão, por exemplo. Talvez muitos fãs afirmem que, como esse não era o tema central da história, seria difícil encaixar tal discussão. Mas, especialmente nos livros, a autora encontrou tempo para falar de outros temas, já citados acima, e para desenvolver várias características dos personagens. Não seria interessante incluir isso também?
O tema esbarra em outro problema da obra de J.K. Rowling: a falta de personagens da comunidade LGBTQ+. Embora tenha afirmado posteriormente que Alvo Dumbledore era gay e apaixonado pelo bruxo das trevas Gerardo Grindelwald, isso nunca foi colocado abertamente na obra. O diretor de Hogwarts nunca falou sobre o tema em sete livros e, apenas agora com o lançamento de Animais Fantásticos, há alguma indicação do romance nos filmes, mas ainda nada tão direto. Dumbledore não é definido por ser gay, assim como pessoas trans não são definidas por isso, mas não há dúvidas que a sexulidade e gênero são pontos importantes na vida dos personagens e deveriam ser colocados naturalmente nas obras.
Imagine se Alvo Dumbledore fosse abertamente gay durante os livros de Harry Potter e precisasse lidar exatamente com um aluno que está em um momento de dúvida sobre sua sexulidade e gênero, incluindo a divisão dos dormitórios e banheiros. Seria uma discussão interessante, que agregaria ainda mais a um personagem tão amado pelos fãs exatamente por tratar todos com gentileza.
O livro Harry Potter e a Pedra Filosofal foi publicado originalmente em 1997, época em que autoras tinham pouco espaço na literatura fantástica. Era comum ver homens falando sobre fantasia e ficção científica e mulheres eram mais escolhidas para temas românticos e dramáticos. Para evitar preconceitos e ter mais espaço, Rowling escolheu assinar como J.K. Rowling, ao invés de Joanne Rowling, ou algo do tipo, para não deixar claro que era uma mulher e não ter sua obra julgada com antecedência. Logo, ela sabe como é precisar se esconder para ser aceito e como isso é extremamente doloroso.
Na época talvez fosse difícil incluir personagens LGBTQ+ em sua obra, afinal já tinha sido difícil o suficiente ser publicada, mas à época dos lançamentos de Harry Potter e o Enigma do Príncipe e Harry Potter e as Relíquias da Morte, a franquia já era um sucesso e Rowling poderia sim ter incluído mais detalhes sobre a vida de Dumbledore, levando em consideração que esses dois livros abordam o passado do bruxo e tal narrativa se encaixaria perfeitamente.
E esse não é o único problema de Harry Potter se olharmos mais a fundo. Nas descrições da família Dursley, por exemplo, Rowling frequentemente detalhou os atributos físicos de Duda, destacando como seu corpo sobra para fora da cadeira e o comparando com porquinhos, mesmo tratamento dado ao Tio Válter. Não seria mais interessante se ela falasse mais sobre as personalidades de ambos, descrevendo como eles tratavam mal todos que eram diferentes, incluindo Harry? Destacar atributos físicos de pessoas acima do peso como se fossem defeitos não ajuda em nada um grupo que já é frequentemente atacado, como também acontece com a comunidade trans.
Harry Potter jamais deixará de habitar o coração dos fãs (incluindo o meu). O mundo mágico que J.K. Rowling criou foi por muitas décadas o lar daqueles que sentiam deslocados de suas vidas e encontraram ali um lugar onde poderiam ser aceitos. Se a obra, publicada entre as décadas de 90 e 2000, segue imutável e como um retrato de seu tempo, o mesmo não pode ser dito de nós. Não é possível reescrever Harry Potter, mas todos nós podemos evoluir a cada dia, aprendendo mais sobre as dores e dificuldades de pessoas com realidades diferentes da nossa. Se os fãs do mundo mágico podem fazer isso, é necessário que J.K. Rowling o faça também.