[Atenção: o texto a seguir contém spoilers da Parte 4 de La Casa de Papel. Logo, se você ainda não assistiu, guarde esse texto para mais tarde]
Assim como acontece em La Casa de Papel, as máscaras do pintor Salvador Dalí e o característico macacão vermelho dos ladrões se tornaram símbolos de resistência na vida real, sendo adotados por diversas lutas sociais, entre elas a feminista. Não é preciso muita reflexão para entender o motivo. Basta lembrar da icônica cena em que Nairóbi (Alba Flores) declara o início do matriarcado, depois de ouvir numerosos discursos misóginos do até então líder Berlim (Pedro Alonso). Ou, ainda, todo o debate do bando sobre o abuso de Ariadna (Clara Alvarado) e o complicado romance entre Denver (Jaime Lorente) e Mónica (Esther Acebo). A Parte 4, porém, vai além. Colocando todas as personagens realmente no centro da trama, a série dá ainda mais espaço para analisar o machismo cotidiano em um contexto extremo, como é um assalto.
Mónica talvez seja o maior exemplo disso. A tímida e indefesa secretária das primeiras temporadas não existe mais. Agora com o codinome Estocolmo, ela provou de uma vez por todas ser uma parte vital do grupo. No momento mais crítico no Banco da Espanha, quando Nairóbi foi executada na frente de todos, ela chamou para si a responsabilidade e assumiu a liderança da operação do ouro.
Esta não foi a primeira vez que Mónica se impôs - sua reação ao inesperado retorno de Arturito (Enrique Arce) e sua bronca em Denver pelos bem dados socos no ex foram apenas dois dos episódios que anunciaram essa evolução da personagem. No entanto, foi nestes novos oito capítulos que ela finalmente entendeu sua força e relevância. O efeito no restante do grupo é claro. Todos respeitaram sua postura, inclusive seu marido, que semanas antes fizera comentários machistas sobre seu envolvimento no roubo, e Palermo (Rodrigo de La Serna), que definitivamente não gosta de dividir os holofotes com ninguém, muito menos com mulheres.
Tóquio (Úrsula Corberó) certamente foi a integrante que mais sentiu a aversão do colega argentino durante a missão. Mas, diferente do que era esperado da personagem, agora a ladra parece mais madura para tomar decisões e enfrentar sua oposição. Quando Gandía (José Manuel Poga) se libertou, por exemplo, ela rapidamente assumiu as rédeas da situação e coordenou o grupo na caça ao refém. Mesmo depois de capturada, ela soube jogar o jogo do chefe de segurança e terminou de rendê-lo. É verdade que seu rompimento com Rio (Miguel Herrán) ainda rendeu momentos bastante adolescentes dado seu ressentimento. No entanto, no que diz respeito ao roubo, ela nunca esteve tão serena. Não à toa, é ela que revela ao Professor (Álvaro Morte) a possibilidade de Lisboa (Itziar Ituño) estar viva e sob a custódia da polícia.
A temporada anterior foi essencial para estabelecer as bases para essa evolução geral, seja com o insensível discurso do “Boom Boom Ciao”, seja com a surpreendente insegurança do Professor de dividir o comando da operação com a namorada. Porém, ninguém preparou o público para a postura chocante de Arturito. O antigo diretor da Casa da Moeda sempre foi covarde e os dois anos entre um roubo e outro parecem apenas ter potencializado este seu traço. Quando se pensava que a tentativa de estupro de Estocolmo seria a pior coisa que ele poderia fazer, ele surpreendeu ao efetivamente cometer esse crime, drogando e abusando da refém e sua fã Amanda (Olalla Hernández). E ela não teria sido a única vítima não fosse a desconfiança de Manila (Belén Cuesta), ladra infiltrada entre os reféns.
Vale notar que a própria introdução de Manila é bastante sintomática sobre a sensibilidade e até mesmo o didatismo de La Casa de Papel para abordar determinados temas. Se com Arturito a série frisa a repugnância de seus atos na montagem, ao apresentar a personagem de Cuesta, uma mulher trans, a produção toma tempo para explorar um longo diálogo entre ela e seu primo Denver, no qual o jovem manifesta suas dúvidas sobre gênero e sexualidade - que, convenhamos, poderiam ser também do público.
Estes são apenas alguns exemplos dos avanços da série nesta temporada. Há de se citar ainda o interessante embate entre Lisboa e a inspetora Sierra (Najwa Nimri), duas mulheres bastante acostumadas a lidar com o machismo da polícia, e os sempre fortes ensinamentos de Nairóbi que, mesmo fragilizada, não deixou de exercer sua autoridade.
Em resumo, por mais extremas que sejam as situações retratadas no Banco da Espanha, La Casa de Papel ressoa no público pelo nível de realidade das suas subtramas. O abuso (e o medo dele, como bem afirma Nairóbi em determinado ponto da série), a objetificação e a rotina de ser subestimada por seus pares homens são situações com as quais as espectadoras estão bem acostumadas. Por isso, a vitória das personagens - e também os golpes sofridos por elas - impactam o público de maneira mais intensa. Em alguma medida, somos resistência assim como Nairóbi, Tóquio, Estocolmo, Lisboa, Manila e Amanda.
Nairóbi é uma das minhas maiores inspirações. 😢❤️#LCDP4 pic.twitter.com/NcGXX3FNaa
— netflixbrasil (@NetflixBrasil) April 6, 2020