Para que servem gêneros musicais? Além da função mercadológica óbvia de separar mercados e facilitar a vida de marketeiros, é difícil pensar em uma finalidade artística para a divisão rígida entre rock, pop, country, soul, hip hop. Beneficia a quem prender artistas a uma série de regras e ditar como eles podem ou não podem compor, produzir, cantar? Certamente não aos próprios artistas, e nem ao público.
Tudo isso para dizer que, na noite do sábado (26), Miley Cyrus assassinou o conceito de gênero musical no palco Budweiser do Lollapalooza 2022 - e todos nós deveríamos agradecê-la por isso. Não que o tal conceito vá ficar morto por muito tempo, claro. Ele sempre arranja um jeito de voltar e nos assombrar, tal qual o assassino em um slasher dos anos 80. Mas, esta noite, ele está morto e enterrado.
O reino anárquico de Miley começou cedo, quando ela entrou no palco ("só" 15 minutos atrasada) com "We Can't Stop", o hino proto-trap que marcou a sua transformação em popstar em 2013, com o álbum Bangerz. Trocados os teladinhos e sintetizadores distorcidos da versão de estúdio por paredes de guitarras e backing vocals poderosos, ela é outra música, um épico rock-soul atrevidamente metido no meio de uma estrutura francamente dançante.
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É impossível não abrir um sorriso, nem que seja só pela ousadia, especialmente quando ela sorrateiramente inclui versos de "Where is My Mind?", do Pixies, no meio da música. E não foi a única vez que ela fez esse tipo de intercalação: "See You Again" (do Meet Miley Cyrus, de 2007, deliciosamente reimaginada como se fosse um clássico hardcore) veio introduzida por versos de "Bang Bang (My Baby Shot me Down)", de Nancy Sinatra; e o glam rock "Plastic Hearts" foi seguido por um cover berrado de "Heart of Glass", do Blondie, só pela graça da semelhança temática.
Por falar em Blondie, Miley muitas vezes evocou Debbie Harry, talvez o grande ícone pop do rock n' roll (essa parece uma frase antitética, mas não é) no palco. De óculos escuros e collant preto, posando como supermodelo com os cabelos esvoaçantes, ela parecia a renderização de Debbie feita por Andy Warhol - principalmente nos telões do palco Budweiser, que passavam a imagem por filtros negativados de várias cores.
Diante de um letreiro em que se lia "sell out to sell out" ("se venda para encher estádios", basicamente), Miley Cyrus debochou gloriosamente da separação mesquinha entre pop e rock. Poucas bandas supostamente "pesadas" que se apresentaram no Lolla esse ano serviram mais atitude, mais teatro e, inclusive, um som mais propulsivo (de "WTF Do I Know" a "7 Things", as guitarras não deram folga) do que Miley.
Isso, é claro, quando ela não estava desfilando um flow de hip hop pontual em "Dooo It!", transformando a disco music de Mark Ronson em country rock para "Nothing Breaks Like a Heart", ou recuperando a aura inconfundível de popstar ao chamar Anitta (e sensualizar com ela) para "Boys Don't Cry". Nada está fora do alcance para Miley Cyrus. Nada é ridículo ou contraditório demais para ela.
Na noite deste sábado, ela olhou para o precipício do pop e pulou, com um sorriso no rosto. Eu estava lá, sorrindo com ela. E você?